Depois de controlar a queda nas ordenações, a Igreja Católica no Brasil enfrenta outro problema: o baixo nível cultural dos novos padres
Débora Crivellaro e Marceu Vieira
Diante das câmeras de televisão que transmitem suas palavras para milhões de fiéis, o padre Marcelo Rossi recorre vez por outra a duas citações que mantém arquivadas em seu acervo pessoal. "Quem ama canta e quem canta reza duas vezes" é uma delas. "No coração da igreja eu quero ser como uma criança" é a outra. Ambas são de autoria de Santo Agostinho, filósofo brilhante que lançou luzes sobre a Igreja Católica em plena Idade Média. Mas, despejadas aleatoriamente por padre Marcelo, ganham a força de uma coreografia inspirada em bichinhos. A performance rica em carisma e pobre em conteúdo do padre superstar é sempre vista de perto por seu mentor, dom frei Fernando Antônio Figueiredo, de 62 anos, bispo de Santo Amaro, em São Paulo. Um dos maiores intelectuais da Igreja brasileira, ele é doutor em teologia patrística, praticada nos primeiros séculos do cristianismo pelo próprio Santo Agostinho. A cada vez que sobem juntos ao altar, pupilo e mestre transformam-se no melhor exemplo do mais recente espinho da Igreja Católica do país: o nível cultural dos novos padres e freiras anda muito semelhante ao de boa parte dos recém-formados pelas universidades brasileiras — cada vez mais fraco.
Apesar de ser acompanhado de perto por dom Fernando, padre Marcelo é autor de sermões inconsistentes. "Ele foi um aluno mediano, para não dizer medíocre. Hoje tem o poder de fazer milhões de pessoas dançar. Mas suas homilias são fraquíssimas", diz o padre Benedito Ferraro, da PUC de Campinas, que foi professor de padre Rossi em São Paulo. Trata-se, na verdade, de uma deficiência comum à nova geração do clero.
Como os clérigos não fazem o provão do MEC, a melhor maneira de aferir a queda do nível cultural dos que se dedicam à vida religiosa é mesmo acompanhá-los nas missas e escolas. Observadores graduados não têm gostado do que vêem. "Alguns novos padres estão muito mal preparados. Já ouvi barbaridades, erros na construção do discurso e na interpretação das leituras bíblicas", reclama o teólogo salesiano João Luís Gonçalves. "A queda do nível dos padres é galopante", completa Luiz Roberto Benedetti, professor da PUC de Campinas.
A pesquisa que faz a melhor radiografia da indigência cultural dos novos padres é de autoria do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris). O levantamento mostra que a maioria dos religiosos do país tem a mesma origem de sempre: cresceu na zona rural e pertence a famílias pobres. Seminários e conventos — assim como a carreira militar — sempre foram destino para filhos de classes menos favorecidas. Por isso, os dados do Ceris só fazem sentido se cruzados com a decadência do ensino público e das escolas de teologia e filosofia. Quando se apresentam para a vida religiosa, os candidatos já chegam com sérias lacunas na formação. E boa parte dos seminários se revela incapaz de reeducá-los. O somatório não é dos mais animadores para o futuro da instituição. "Os novos padres são mais fracos intelectualmente. A Igreja tem um conteúdo doutrinário a ser transmitido. Se eles não forem convincentes, ficará difícil manter antigos fiéis ou arrebanhar novos", analisa Sílvia Fernandes, socióloga do Ceris.
Até três décadas atrás, os candidatos entravam para os "Seminários Menores" ainda na infância e faziam o equivalente aos antigos ginásio e colegial sob a orientação da Igreja. Depois, iam para o Maior, correspondente ao terceiro grau, onde enfrentavam uma média de sete anos de estudos. Só então eram ordenados. Esse sistema de preparação fechado começou a entrar em desuso por conta das mudanças determinadas pelo Concílio Vaticano II, que desenhou a Igreja moderna. Também contribuiu para a queda desse tipo de educação um fenômeno iniciado na Europa. Os casais começaram a ter menos filhos e preferiam mantê-los em casa até os 18 anos. No Brasil, houve um ingrediente a mais: o crescimento da Teologia da Libertação, que desaprova os Seminários Menores e privilegia o contato do candidato com a comunidade.
“Sou órfão de pai, tenho seis irmãos e sempre estudei em escolas públicas. No início tive dificuldades com os estudos no seminário. Mas consegui superá-las” -- Mário Barbosa Filho, estudante do Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio.
Assim como ocorre com as faculdades privadas, os seminários multiplicam-se pelo país afora. Hoje, cada diocese quer ter o seu. Torna-se mais difícil, então, controlar o nível de ensino. "Já fui convidado a dar cursos em outros Estados porque os alunos não agüentavam padres e bispos que ensinavam matérias que não dominavam", conta o teólogo Fernando Altemeyer Júnior, professor da PUC de São Paulo. Os jovens que escapam das dioceses e entram em uma ordem ressentem-se menos disso. Roque Luiz Sibione, de 30 anos, poderia ser exemplo da pesquisa do Ceris. Veio da zona rural de Urupês, no interior paulista, e é filho de lavradores. Mas entrou para a ordem dos salesianos aos 23 anos e hoje tem mestrado em educação.
As instituições mais rígidas tentam manter o nível de ensino a duras penas. Antes, elas costumavam ter entre os alunos integrantes de uma elite que destinava pelo menos um dos filhos para uma respeitável carreira religiosa — e em um movimento circular também era conferido status à instituição. Hoje, esses seminários se limitam a transferir prestígio aos novos alunos. Roberto Luiz Oliveira Almeida, de 23 anos, está no Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio de Janeiro, desde 1999. É de Santa Cruz, bairro pobre na Zona Oeste da cidade. Quando a vocação despertou, era vendedor de uma fábrica de chocolates. "Eu pensava em seguir carreira militar", lembra. "Nos estudos tive surpresas, mas não cheguei a levar um choque."
"Os meninos que chegam com péssima bagagem cultural têm acompanhamento intensivo", diz dom Karl Joseph Romer, bispo auxiliar do Rio, há 26 anos responsável pelas vocações. Os seminários cariocas contam com laboratório de idiomas, bibliotecas e bons professores. Cada aluno custa R$ 800 mensais à Arquidiocese do Rio. "Eu sempre digo a eles: empenhem-se e reconheçam o que a Igreja fez por vocês, pois no fim de oito anos de seminário seria possível construir uma igreja por aluno", diz o padre João Geraldo Bellocchio, vice-reitor do Seminário Arquidiocesano de São José. Mário Antônio Barbosa Filho, de 27 anos — morador do Morro do Salgueiro, uma das mais violentas favelas cariocas, órfão de pai e com seis irmãos —, segue à risca o conselho do professor. Está há três anos no seminário e integra a parcela dos que recebem atenção redobrada. "Tive dificuldades no início", reconhece.
Em São Paulo, o nível dos candidatos é tão preocupante que a arquidiocese implantou há quatro anos um intensivo chamado propedêutica. "Eles estudam a fé católica e a catequese, mas também preenchem lacunas", conta dom Gil Antônio Moreira, bispo auxiliar. Dom Gil imagina que em cinco anos a média de ordenações em São Paulo duplique.
Por ironia, os bispos esperam que algumas novas vocações sejam despertadas pelo sucesso de Marcelo Rossi, que em seus tempos de seminário tinha notas apenas regulares. A inspiração pode não ser tão ruim assim. No debate sobre a importância do nível cultural dos novos clérigos, há sempre quem lembre de São Francisco de Assis, para quem discussões filosófico-teológicas não tinham relação com seguir os ensinamentos de Jesus Cristo. Além disso, o protetor dos párocos foi um francês nascido no fim do século XVIII que comeu o pão que o diabo amassou para tornar-se padre. Aluno limitado, São João Maria Batista Vianney chegou a ser expulso do seminário. Foi reconduzido por sua bondade e se tornou um dos religiosos mais reverenciados da história da Igreja. Resta saber se todo novo padre no Brasil vem abastecido com essa santidade.
Fonte: Revista Época Globo.com/Brasil Notícias, 20-04-2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário