20 de dez. de 2011

NATAL: QUANDO O ALTÍSSIMO ABRE MÃO DE SUA ONIPOTÊNCIA

O encontro com Deus só se produz na humildade. É preciso que me entendas bem: trata-se da humildade de Deus, antes de tudo, porque como dizia São Francisco de Assis, Deus é humildade e ele sempre se abaixa quando quer falar conosco”  (Enzo Bianchi)

1. Natal é festa do coração franciscano. Desde a nossa mais tenra idade estamos acostumados a ouvir falar de Greccio, do presépio, da ternura que Francisco tinha pelo menino das palhas, do carinho que devotava à Paupércula Maria que oferecia o leite generoso de seu peito para alimentar Deus carente e pobre. Francisco “recordava-se em assídua meditação das palavras e com penetrante consideração rememorava as obras do Senhor. Principalmente a  humildade da encarnação e a caridade da paixão, de tal modo ocupavam sua memória, que mal queria pensar em outra coisa. Deve-se, por isso, recordar e cultivar em reverente memória o que ele fez no dia do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, no terceiro ano antes do dia de sua gloriosa morte, na aldeia que se chama Greccio” (1Cel 84). Ele queria ver com os próprios olhos, plasticamente, aquilo que havia se passado na noite do Oriente, na cidade de Belém, quando Deus resolveu ser o Deus-conosco. Quantas e quantas vezes participamos de encenações e celebrações que retomaram as palavras e os gestos de Francisco.
2. Aprendemos a ver o Poverello, perto do “berço” do Menino, tomando dois galhos e inventando um violino. Um dançarino que vive a festa da visita de um Deus que não esmaga, nem tira o fôlego, mas que estende a mão para ser socorrido, que precisa do leite generoso do seio de sua Mãe, que solicita ser cuidado como todas as frágeis crianças que vêm ao mundo. Para nós, não existe Natal sem as cores franciscanas de Greccio.
3. Mais uma vez vivemos essa atmosfera de dezembro. As pessoas correm de um lado para o outro, meio perdidas, meio aturdidas. Pressa, compras, consumo, certa alegria, ornamentações extremamente artísticas nos suntuosos centros comerciais das grandes cidades. Os comerciantes não sabem o que fazer para atrair a clientela e para terem resultados financeiros superiores aos do ano passado. Perfumes, sofisticados celulares, chocolates, roupas, sapatos, bolsas: tudo enfeitado em guirlandas, envolvidos em papeis coloridos, luzes cintilantes. Pelos corredores, música envolvente. Papai Noel sentado num trenó espera crianças que se assentem a seu lado para serem fotografadas.   Estas ficam extasiadas esperando a noite dos presentes. O amado ou amante compra para a amada ou amante um colar de diamantes, presente de Natal.  Nas casas cintilam as lâmpadas (made in China), na árvore da sala, nas plantas do jardim e nos arcos das  varandas. Há luz e alegria. Mas pode ser que nessas catedrais do consumo e mesmo em muitas casas se tenha esquecido da figura central e mais importante:  o menino das palhas. Sim, há aqui ou ali um presépio. Mas basta isso? Pode ser que tenhamos tirado de caixas de papelão que estavam no sótão ou no porão as figuras do presépio:  os personagens centrais, os pastores, os animais, os anjos, o casario e a fonte que jorra água de verdade. Tudo isso faz parte da decoração exterior, dum certo folclore. Pode mesmo ter acontecido que alguns tenham seguido os textos desses livrinhos de novenas de Natal, livrinhos cheios de palavras  piedosas  ou  libertárias que repetem o que já sabemos.  O importante seria se viéssemos a nos reencantar com o fato: Deus se torna fragilidade.
4. A onipotência de Deus se manifesta em sua fragilidade. Lá no final de sua trajetória tudo fica claro: um jovem adulto sem apoios externos, um ser na plenitude de suas forças sendo ridicularizado, despojado de tudo, vilipendiado, amarrado, desrespeitado, insultado, abandonado. Remexendo-se de dor no alto da cruz, torturado pela sede,  tentado pelo desânimo, sorvendo gole após gole o cálice da amargura: um ser frágil que ali atinge o ápice da fragilidade.  Fragilidade que acompanhou seus dias: sem casa, sem propriedades, sem mesmo pedra para reclinar a cabeça, buscando  sempre abrigo no interior do coração de pessoas que iam se fechando  a ele, não lhe restando outra coisa senão tomar o bastão e buscar abrigo em outros corações. Tudo havia começado lá naquela noite antiga do Oriente, na singeleza do começo da aventura de Deus na terra dos homens, na noite despojada da gruta de Belém.
Sim, perto de nós e à nossa volta está a fragilidade de Deus.
5. Uma frágil criança, sem vontade própria, que não fala… Assim Deus vem à humanidade. Não como um conquistador ou um dominador, mas através de um presente que nos é feito. A pobreza desse nascimento tem tudo a ver com sua Paixão dolorida. Um Deus que se desapropria. Como que a dizer que o amor que salva é sempre desapropriação. Natal  é a revelação de um Deus de humildade, que não vem obrigar o homem reconhecê-lo  pelo medo. Quando chega a plenitude dos tempos e chega o momento das  revelações, ficamos todos pasmos de ver a fragilidade de Deus. “Deus criança! Talvez estranhássemos menos se Deus tivesse ganhado corpo num adulto com belo porte, um militar graduado ou chefe de Estado. A criança, contrariamente, é a figura da humanidade dependente que precisa ser alimentada, vestida, assistida em todos os momentos. A criança tem os olhos voltados para aqueles que têm a força, o ter e  o poder. A criança necessita aprender.  Aquele que é o Verbo necessita aprender a falar, esse Verbo que vai de um extremo  ao outro da terra. Terá que aprender a andar. Deus perde sua onipotência. Ele se desarma totalmente e  se submete à escolha de nossa liberdade. Deixará a todos os homens o poder sobre o mundo. Um Deus que se torna criança.
6. Deus é o criador. Tira do nada as estrelas e o ser humano do pó da terra.  Agora, depois do pecado do homem, vai começar um mundo novo em que Deus se torna uma criança despojada, um Deus desapropriado. Começa agora um mundo novo que esse Menino chamará de  Reino. Um reino que começa na fragilidade do rosto de uma dependente criança e que será inaugurado com a entrega irrestrita de um condenado à morte sem defesa. Um começo novo, distante do poder. “A liturgia do advento é um caleidoscópio de imagens de nascimento  e de novidade:  é um jardim que surge no meio do deserto, é a libertação dos que estavam na prisão, é a expectativa realizada. Quem reconhecerá isso nos traços de um recém-nascido? Alguns pastores humildes em sua condição social; magos, humildes buscadores de verdade. Esses nos abrem os caminhos. Ela continua sempre aberta” (Christophe Chaland). Um Deus que abre mão de sua onipotência e é buscado pelos pequenos da face da terra.
7. “Enquanto um profundo silêncio  envolvia o universo e a noite ia no meio do seu curso, desceu do céu, ó Deus, de seu trono real, a vossa Palavra onipotente (Antífona de entrada da Missa de 30 de janeiro, inspirada em Sabedoria  18,14-15).  No belo tempo do Natal, essas palavras soam forte aos nossos ouvidos. O Deus que se torna frágil aparece no quadro do silêncio e não do espalhafato e das proclamações ruidosas. Trata-se de um nascimento comum. Talvez para deixar de pensar no chocante que é esse nascimento de Deus numa criança fomos aos poucos sobrecarregando o Natal com elementos perfeitamente acessórios: Papai-Noel, os presentes, a ceia. Tudo só tem sentido quando colocado em relação às núpcias de Deus com a humanidade: “Teu autor te desposará!” Com Cristo e no Cristo somos uma só carne”. Não é por isso que, no final do tempo do Natal, costuma-se ler o evangelho das Bodas de Caná? Por ocasião do nascimento de Jesus, os evangelistas não mencionam nenhuma palavra de Maria ou de José.  Eva, no Gênesis, é mulher prolixa. Maria, quieta, guarda todas as coisas no fundo do coração.  A razão é que esta criança disse tudo, ele é toda Palavra divina e humana  (Pensamentos de Marcel  Domergue, SJ, in Croire Aujourd’hui,  n. 251).
8. Tempos novos, tempos de simplicidade.  Tempos de facilitar a encarnação de Deus no humano. Hoje, mais do que nunca, precisamos mostrar um Deus humilde que chega perto de nós. Ele está nos campos de concentração de ontem e de hoje, está nessas chacinas que ceifam a vida de seres queridos.  No coração de tudo está não o Deus tonitruante, mas  o Deus frágil,  tão frágil como o menino das palhas, tão frágil como o torturado do Gólgota. Natal, tempo de serena e profunda alegria. Um menino nasceu para nós. Um Deus que vem bater as batidas de seu coração ao ritmo da batida de nosso peito. Um Deus que abdica de sua onipotência para estar perto da humanidade.
9. Por vezes, temos a impressão que muitos se mostram indiferentes à fé cristã e  à Igreja. Há sensível e preocupante diminuição dos fiéis cristãos. Nossas assembleias dominicais contam com poucos participantes e a grande maioria,  em muitos lugares, constituída de pessoas idosas. Nem sempre a Igreja consegue ser expressibilidade da força do Evangelho. A festa do Natal, esse momento em que vemos um Deus que abdica do poder e abre mão da onipotência nascendo criança e fragilidade não seria um momento em que nós, discípulos de Cristo e membros da Igreja, venhamos a agir cristã e pastoralmente simplesmente a partir da pobreza do Deus das palhas?
10. Nada de tristeza, nada de espírito sombrio. Na pobreza do Natal, a alegria explode. Para Francisco, não existe sexta-feira nem abstinência quando o Natal cai em sexta-feira:  “Beijava em famélica meditação as imagens daqueles membros infantis, e a compaixão pelo Menino, derretida em seu coração, fazia-o mesmo  balbuciar  palavra de doçura à moda de crianças. E este nome era para ele como o mel e o favo na boca. Uma vez que conversava sobre a questão de não comer carnes, porque era dia de sexta-feira, ele respondeu a Frei Mórico, dizendo: Irmão, pecas ao chamar de sexta-feira o dia em que o Menino nos foi dado. Quero que até as paredes comam neste dia e, se não podem,  pelo menos sejam esfregadas com carne por fora”. Que todos saibam que Deus se tornou fragilidade e abdicou de sua onipotência para poder viver perto de nós nossa aventura humana! É festa para sempre na terra dos homens!
Fonte:http://www.franciscanos.org.br/n/?p=7812
Frei Almir Ribeiro Guimarães

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