Por Fernanda Sucupira e Leonardo Sakamoto
BRASÍLIA – Trabalhei cedo e isso moldou meu caráter. A frase é repetida à exaustão quando se critica o trabalho infantil no Brasil. Compreensível, uma vez que muita gente sente que sua experiência de superação é bonita o suficiente para ser copiada pelos filhos. Mas será que os defensores do trabalho infantil não percebem que ele não precisa ser hereditário?
Para fortalecer essa discussão foi lançado, na última semana em Brasília, o relatório “Brasil Livre de Trabalho Infantil: o debate sobre as estratégias para eliminar a exploração de crianças e adolescentes”. É um levantamento detalhado da ONG Repórter Brasil. O documento foi apresentado à Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos.
Passado um primeiro momento de arrancada na prevenção e eliminação do trabalho infantil no Brasil, do início da década de 90 até meados dos anos 2000, o país enfrenta um novo desafio para manter o ritmo de queda. Enquanto a primeira fase foi marcada pela retirada de crianças e adolescentes das cadeias formais de trabalho, a questão atual são as piores formas de trabalho, que o poder público tem mais dificuldade de alcançar.
Ações como o Bolsa Família contribuem para manter a criança na escola. Mas não são suficientes. Muito menos garantem o interesse dos alunos na sua própria formação. Não raro eles fazem um cálculo que lhes parece racional, deixando uma escola que, a seu ver, não os levará a lugar nenhum porque não considera sua realidade, não foi pensada para suas necessidades, com professores desmotivados e despreparados a fim de tentar a sorte em um emprego incerto atrás do “sonho brasileiro”. Buscam o curto prazo, pois é nele que está a sua sobrevivência e a de sua família, mas também porque o sistema educacional e, neste caso, o Estado não consegue lhe mostrar algo além do horizonte. Isso quando não optam pelos convites sedutores da criminalidade. Nesses casos, é viver a vida louca, porque sabem que não existirá longo prazo para eles.
De acordo com o Censo de 2010, 3,4 milhões de crianças e adolescentes de 10 a 17 anos estavam trabalhando. De 2000 a 2010, a redução foi de 13,4%, mas a ocorrência do problema chegou a aumentar 1,5% entre crianças de 10 a 13 anos, justamente na faixa etária mais vulnerável dessa população, para a qual todo tipo de trabalho é proibido.
Entre as atividades mais complicadas de se debelar estão o trabalho infantil doméstico, nos lixões, na agricultura familiar, no comércio informal urbano, na produção familiar dentro do próprio domicílio, na exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, no narcotráfico. Nesses casos, muitas vezes há uma ambiguidade entre o trabalho infantil e o local de vivência das crianças ou há relação com atividades ilícitas, o que torna o enfrentamento mais complexo.
O Censo de 2010 mostrou um quadro diferente daquele que se observava nos anos 1990. Os dados apontam que quase 40% das pessoas com menos de 18 anos em situação de trabalho não estão em famílias que vivem abaixo da linha de pobreza.
Se antes a pobreza era um dos determinantes do trabalho infantil, hoje essa relação ficou menos direta. Há uma parcela de adolescentes que não trabalha para garantir a sobrevivência de suas famílias, mas para obter bens de consumo, como tênis e roupas de marca. São aspirações materiais que nem suas famílias nem os programas de transferência de renda podem satisfazer. Eles entram no mercado de trabalho, muitas vezes em empregos precários e informais, em busca de inclusão social, autonomia e independência econômica.
Entrar muito cedo e de forma precária no mercado de trabalho pode atrapalhar o desenvolvimento da criança e do adolescente. Há movimentações no Congresso Nacional para diminuir a idade mínima legal para se trabalhar no país como alternativa à “criminalidade”. Ao invés disso, deveríamos estar lutando por uma educação que prepare crianças e adolescentes para serem protagonistas de suas próprias histórias e não peças de reposição.
Texto originalmente publicado na Revista Amanhã, do jornal O Globo
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