Uma das maiores balelas do discurso anti-cotas no Brasil é que as
políticas de ação afirmativa não se justificam porque “todos são iguais
perante à lei”. Iguais como, se uns saíram na frente, com séculos de
vantagem, em relação ao outro? As cotas vieram justamente para ser uma
ponte sobre o fosso histórico entre negros e brancos. Para dar aos
negros condições de alcançarem mais rápido esta “igualdade” que alguns
insistem que já existe.
Ninguém melhor do que o antropólogo Darcy Ribeiro, grande inspirador
deste blog, para explicar como esta “igualdade” de condição nada mais é
do que uma falácia por parte de quem, no fundo, deseja perpetuar as
desigualdades raciais em nosso país. Os trechos que selecionei são do
livro O O Povo Brasileiro
(Companhia das Letras), cuja leitura recomendo fortemente. Deveria ser
obrigatório em todas as escolas. Atentem para um detalhe: reconheçam no
texto de Darcy os futuros meninos de rua.
E viva o Dia da Consciência Negra!
Por Darcy Ribeiro
CLASSE E RAÇA
A distância social mais espantosa no Brasil é a que separa e opõe os
pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre
negros, mulatos e índios, sobretudo os primeiros.
Entretanto, a rebeldia negra é muito menor e menos agressiva do que
deveria ser. Não foi assim no passado. As lutas mais longas e cruentas
que se travaram no Brasil foram a resistência indígena secular e a luta
dos negros contra a escravidão, que duraram os séculos do escravismo.
Tendo início quando começou o tráfico, só se encerrou com a abolição.
Sua forma era principalmente a da fuga, para a resistência e para a
reconstituição de sua vida em liberdade nas comunidades solidárias dos
quilombos, que se multiplicaram aos milhares. Eram formações
protobrasileiras, porque o quilombola era um negro já aculturado,
sabendo sobreviver na natureza brasileira, e, também, porque lhe seria
impossível reconstituir as formas de vida da África. Seu drama era a
situação paradoxal de quem pode ganhar mil batalhas sem vencer a guerra,
mas não pode perder nenhuma. Isso foi o que sucedeu com todos os
quilombos, inclusive com o principal deles, Palmares, que resistiu por
mais de um século, mas afinal caiu, arrasado, e teve o seu povo vendido,
aos lotes, para o sul e para o Caribe.
Mas a luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes
brasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de
participante legítimo na sociedade nacional. Nela se viu incorporado à
força. Ajudou a construí-la e, nesse esforço, se desfez, mas, ao fim, só
nela sabia viver, em função de sua total desafricanização. A primeira
tarefa do negro brasileiro foi a de aprender a falar o português que
ouvia nos berros do capataz. Teve de fazê-lo para poder comunicar-se com
seus companheiros de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o,
se reumanizou, começando a sair da condição de bem semovente, mero
animal ou força energética para o trabalho. Conseguindo miraculosamente
dominar a nova língua, não só a refez, emprestando singularidade ao
português do Brasil, mas também possibilitou sua difusão por todo o
território, uma vez que nas outras áreas se falava principalmente a
língua dos índios, o tupi-guarani.
Calculo que o Brasil, no seu fazimento, gastou cerca de 12 milhões de
negros, desgastados como a principal força de trabalho de tudo o que se
produziu aqui e de tudo que aqui se edificou. Ao fim do período
colonial, constituía uma das maiores massas negras do mundo moderno. Sua
abolição, a mais tardia da história, foi a causa principal da queda do
Império e da proclamação da República. Mas as classes dominantes
reestruturaram eficazmente seu sistema de recrutamento da força de
trabalho, substituindo a mão de obra escrava por imigrantes importados
da Europa, cuja população se tornara excedente e exportável a baixo
preço.
(…)
O negro, sentindo-se aliviado da brutalidade que o mantinha
trabalhando no eito, sob a mais dura repressão –inclusive as punições
preventivas, que não castigavam culpas ou preguiças, mas só visavam
dissuadir o negro de fugir– só queria a liberdade. Em consequência, os
ex-escravos abandonam as fazendas em que labutavam, ganham as estradas à
procura de terrenos baldios em que pudessem acampar, para viverem
livres como se estivessem nos quilombos, plantando milho e mandioca para
comer. Caíram, então, em tal condição de miserabilidade que a população
negra reduziu-se substancialmente. Menos pela supressão da importação
anual de novas massas de escravos para repor o estoque, porque essas já
vinham diminuindo há décadas. muito mais pela terrível miséria a que
foram atirados. não podiam estar em lugar algum, porque cada vez que
acampavam, os fazendeiros vizinhos se organizavam e convocavam forças
policiais para expulsá-los, uma vez que toda a terra estava possuída e,
saindo de uma fazenda, se caía fatalmente em outra.
As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos de
antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro, a mesma atitude
de desprezo vil. Para seus pais, o negro escravo, o forro, bem como o
mulato, eram mera força energética, como um saco de carvão, que
desgastado era facilmente substituído por outro que se comprava. Para
seus descendentes, o negro livre, o mulato e o branco pobre são também o
que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela
criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos consensualmente
como culpados de suas próprias desgraças, explicadas como
características da raça e não como resultado da escravidão e da
opressão. Essa visão deformada é assimilada também pelos mulatos e até
pelos negros que conseguem ascender socialmente, os quais se somam ao
contingente branco para discriminar o negro-massa.
A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nunca fez
nada pela massa negra que a construíra. Negou-lhe a posse de qualquer
pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em que pudesse educar
seus filhos, de qualquer ordem de assistência. Só lhes deu, sobejamente,
discriminação e repressão. Grande parte desses negros dirigiu-se às
cidades, onde encontraram, originalmente, os chamados bairros africanos,
que deram lugar às favelas. Desde então, elas vêm se multiplicando,
como a solução que o pobre encontra para morar e conviver. Sempre
debaixo da permanente ameaça de serem erradicados e expulsos.
(…)
BRANCOS VERSUS NEGROS
Examinando a carreira do negro no Brasil, se verifica que,
introduzido como escravo, ele foi desde o primeiro momento chamado à
execução das tarefas mais duras, como mão-de-obra fundamental de todos
os setores produtivos. Tratado como besta de carga exaurida no trabalho,
na qualidade de mero investimento destinado a produzir o máximo de
lucros, enfrentava precaríssimas condições de sobrevivência. Ascendendo à
condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição, o negro se
via jungido a novas formas de exploração que, embora melhores que a
escravidão, só lhe permitiam integrar-se na sociedade e no mundo
cultural, que se tornaram seus, na condição de um subproletariado
compelido ao exercício de seu antigo papel, que continua sendo
principalmente o de animal de serviço.
Enquanto escravo poderia algum proprietário previdente ponderar,
talvez, que resultaria mais econômico manter suas “peças” nutridas para
tirar delas, a longo termo, maior proveito. Ocorreria, mesmo, que um
negro desgastado no eito tivesse oportunidade de envelhecer num canto da
propriedade, vivendo do produto de sua própria roça, devotado a tarefas
mais leves requeridas pela fazenda. Liberto, porém, já não sendo de
ninguém, se encontrava só e hostilizado, contando apenas com sua força
de trabalho, num mundo em que a terra e tudo o mais continuava
apropriada. Tinha de sujeitar-se, assim, a uma exploração que não era
maior que dantes, porque isso seria impraticável, mas era agora
absolutamente desinteressada do seu destino. Nessas condições, o negro
forro, que alcançara de algum modo certo vigor físico, poderia, só por
isso, sendo mais apreciado como trabalhador, fixar-se nalguma fazenda,
ali podendo viver e reproduzir. O débil, o enfermo, o precocemente
envelhecido no trabalho, era simplesmente enxotado como coisa
imprestável.
Depois da primeira lei abolicionista –a Lei do Ventre Livre, que
liberta o filho da negra escrava–, nas áreas de maior concentração da
escravaria, os fazendeiros mandavam abandonar, nas estradas e nas vilas
próximas, as crias de suas negras que, já não sendo coisas suas, não se
sentiam mais na obrigação de alimentar. Nos anos seguintes à Lei do
Ventre Livre (1871), fundaram-se nas vilas e cidades do Estado de São
Paulo dezenas de asilos para acolher essas crianças, atiradas fora pelos
fazendeiros. Após a abolição, à saída dos negros de trabalho que não
mais queriam servir aos antigos senhores, seguiu-se a expulsão dos
negros velhos e enfermos das fazendas. Numerosos grupos de negros
concentraram-se, então, à entrada das vilas e cidades, nas condições
mais precárias. Para escapar a essa liberdade famélica é que começaram a
se deixar aliciar para o trabalho sob as condições ditadas pelo
latifúndio.
Com o desenvolvimento posterior da economia agrícola de exportação e a
superação consequente da auto-suficiência das fazendas, que passaram a
concentrar-se nas lavouras comerciais (sobretudo no cultivo do café, do
algodão e, depois, no plantio de pastagens artificiais), outros
contingentes de trabalhadores e agregados foram expulsos para engrossar a
massa da população residual das vilas. Era agora constituída não apenas
de negros, mas também de pardos e brancos pobres, confundidos todos
como massa dos trabalhadores “livres” do eito, aliciáveis para as fainas
que requeressem mão-de-obra. Essa humanidade detritária
predominantemente negra e mulata pode ser vista, ainda hoje, junto aos
conglomerados urbanos, em todas as áreas do latifúndio, formada por
braceiros estacionais, mendigos, biscateiros, domésticas, cegos,
aleijados, enfermos, amontoados em casebres miseráveis. Os mais velhos,
já desgastados no trabalho agrícola e na vida azarosa, cuidam das
crianças, ainda não amadurecidas para nele engajar-se.
(…)
Assim, o alargamento das bases da sociedade, auspiciado pela
industrialização, ameaça não romper com a superconcentração da riqueza,
do poder e do prestígio monopolizado pelo branco, em virtude da atuação
de pautas diferenciadoras só explicadas historicamente, tais como: a
emergência recente do negro da condição escrava à de trabalhador livre;
uma efetiva condição de inferioridade, produzida pelo tratamento
opressivo que o negro suportou por séculos sem nenhuma satisfação
compensatória; a manutenção de critérios racialmente discriminatórios
que, obstaculizando sua ascensão à simples condição de gente comum,
igual a todos os demais, tornou mais difícil para ele obter educação e
incorporar-se na força de trabalho dos setores modernizados. As taxas de
analfabetismo, de criminalidade e de mortalidade dos negros são, por
isso, as mais elevadas, refletindo o fracasso da sociedade brasileira em
cumprir, na prática, seu ideal professado de uma democracia racial que
integrasse o negro na condição de cidadão indiferenciado dos demais.
Florestan Fernandes assinala que “enquanto não alcançarmos esse
objetivo, não teremos uma democracia racial e tampouco uma democracia.
Por um paradoxo da história, o negro converteu-se, em nossa era, na
pedra de toque da nossa capacidade de forjar nos trópicos esse suporte
da civilização moderna”.
Publicado em 20 de novembro de 2013.
Fonte:Camaradas
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