O cientista e ecosocialista brasileiro Alexandre
Costa questiona as posições assumidas pelo filósofo Slavoj Žižek no que
diz respeito à luta ecológica.
Quando o tema é a luta contra as alterações climáticas, Žižek não sai bem na fotografia. Foto Andy Miah/Flickr
fonte:http://www.esquerda.net/artigo/zizero-%C5%BEi%C5%BEek-e-luta-contra-altera%C3%A7%C3%B5es-clim%C3%A1ticas/30727
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Não pretendo abrir uma ampla polémica em torno da obra de Slavoj Žižek,
o tão conhecido filósofo esloveno, que faz tanto sucesso nos corredores
da esquerda nos dias de hoje. Confesso que não havia lido nenhum de
seus livros até pouco tempo atrás e que apenas guardava pé atrás com o
tratamento de astro pop dado a ele por tanta gente (nada estranho ao meu
tradicional ceticismo de cientista).
Tudo começou, porém, quando divulguei a notícia de que o congresso da esquerda radical europeia havia aprovado o Ecosocialismo como plataforma e,
daí, ao comentar que isso era uma boa notícia, mas que a má notícia é
que 43% do congresso havia votado contra, chamaram-me a atenção para as
posições de Žižek nesse terreno.
A primeira impressão foi a pior possível pois deu-se através de uma
entrevista em que o esloveno caracterizava a ecologia como "ópio do
povo". Com base numa falsa caracterização da luta ecológica como
"política do medo na sua forma mais pura", Žižek conclui que "essa
ecologia do medo tem todas as oportunidades de se converter na forma
ideológica predominante do capitalismo global, um novo ópio das massas
que sucede o da religião". Ora, sabe-se da incapacidade de o capitalismo
se compatibilizar com os ciclos naturais e os fluxos de energia e
matéria do sistema terrestre, com os resíduos da hiperprodução
capitalista perdulariamente contaminando o ecossistema global,
acidificando os oceanos e modificando o clima. Sabe-se que existe uma
contradição fundamental e insolúvel entre um modo de produção que
pressupõe crescimento indefinido da produção de bens materiais e,
portanto, do uso de recursos naturais, incluindo as mais variadas formas
de matéria-prima e energia e as limitações na reposição desses
recursos, ditadas precisamente por tais ciclos e fluxos. E sabe-se que,
na natureza, nada pode crescer indefinida e exponencialmente, sem que se
produza uma instabilidade, não raro "resolvida" de forma catastrófica.
Não há como sustentar um hamster impossível.
Pois bem, como Žižek escapa dessa constatação objetiva, baseada numa
análise dos limites da materialidade física, química e biológica sobre a
qual se sustentam a nossa sociedade e economia? Tratando essa
constatação como "desconfiança em relação à mudança, ao desenvolvimento e
ao progresso", atirando os três conceitos para o mesmo caldeirão,
desprezando as diferenças evidentes (e, em alguns casos, até
contradições intrínsecas) entre eles e até mesmo os seus múltiplos
significados possíveis. Ora, não raro "progresso" e "desenvolvimento"
são identificados com o avanço (predatório) do capital sobre regiões
inexploradas do planeta e com a assimilação e aculturação (quando não é o
caso do genocídio aberto) de grupos sociais e até civilizações
inteiras. Pode-se até chegar ao ponto de ressignificar tais palavras com
base noutra noção de "progresso e desenvolvimento", calcada na
valorização das culturas e do conhecimento científico, no tempo livre,
superando a ideia de que existe uma "natureza a ser domada" no contexto
de uma outra sociedade caracterizada por outro tipo de metabolismo entre
sociedade humana e o restante do ambiente terrestre. Mas é evidente
que, hoje, a visão concreta que as pessoas têm de "progresso e
desenvolvimento" é a do "progresso e desenvolvimento" capitalistas. E,
mais, que esse "progresso e desenvolvimento" realmente existentes são os
que garantem manutenção e reprodução de uma ordem de exploração,
opressão e predação; antagónicos, portanto, à noção mínima de "mudança".
A salada preparada por Žižek obscurece o ponto fundamental: é
necessário haver uma mudança radical da ordem sócio-económica
para que se evite uma ruptura nociva, catastrófica e perigosamente
irreversível (na escala de tempo de uma vida humana, de muitas gerações
humanas, de existência de nossa civilização inteira ou até mesmo de
existência de nossa própria espécie) nas próprias condições materiais de
subsistência da humanidade. Essa mudança precisa romper com o "progresso e desenvolvimento" capitalistas, isto é, com sua lógica de crescimento indefinido para acumulação. Do contrário, ao invés de uma mudança desejada, pode-se descortinar uma mudança indesejada,
com alterações radicais no clima e na biosfera terrestre levando-nos a
um cenário em que a carência de alimento e água, problemas de saúde e
perdas materiais e de vida por eventos severos se acumulem a um ponto de
degeneração do tecido social. Para mim, sem rodeios, Žižek se mostra
profundamente limitado ou desonesto intelectualmente nesse aspecto
elementar.
Da entrevista fui levado a um livro recente desse autor que, em
português, recebeu o título de "Vivendo no fim dos tempos". O livro
aparentemente apresenta uma perspectiva interessante, ao preconizar que
alguns fatores (nomeadamente a crise ecológica, a revolução biogenética,
os desequilíbrios do próprio sistema e o aprofundamento da divisão e
exclusão sociais) estão empurrando o capitalismo para sua crise final,
com o que concordo, evidentemente.
Žižek trabalha com o que supostamente é uma analogia com os cinco
estágios de reação psicológica do indivíduo ante um problema muito
grave: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Neste último
estágio, é como se o indivíduo deixasse de encarar a situação como
ameaçadora e, ao invés disso, a encarasse até como uma oportunidade de
recomeçar. Detive-me particularmente no que ele chama de um
"interlúdio", um texto entre o capítulo da "depressão" e o da
"aceitação". Esse "interlúdio", chamado "apocalipse à porta”, pontua
questões como a crise ecológica, incluindo a mudança climática.
O começo parece bom, sabe? Mas ao final a analogia com o esquema da
psicologia mostra-se totalmente falhado. Após fazer algumas críticas
acertadas ao cinismo do capital ante benefícios parciais e pontuais das
alterações climáticas, o que Žižek reconhece como catástrofe, ele elenca
três "visões apocalípticas" (nenhuma delas correspondendo de fato ao
pensamento científico vigente, muito menos às alternativas propostas ao
desvario capitalista, revindiquem-se elas decrescimentistas,
ecossocialistas, etc.). Daí, ele fecha o "interlúdio" de uma forma
completamente atrapalhada e contraditória. Em suas conclusões, ele
pretende até salvar a pele dos que ele chama de "ecocéticos" por estes
apontarem "o quanto de ideologia há em preocupações ecológicas" [1],
abstraindo - o próprio Žižek - o quanto há de ideologia nas críticas
desenvolvimentistas ao movimento ecológico e, sobretudo, o quanto há de
"ideológico" no sentido raso, isto é, propagandístico, mentiroso,
calunioso e abertamente anticientífico, no que é apresentado pelos
negacionistas climáticos (e outros aos quais Žižek classifica
eufemisticamente como "ecocéticos").
Em preparação para a "aceitação", já claramente querendo encaixar um
círculo em um orifício quadrangular, Žižek patina no que ele chama de
"abertura à contingência radical", jogando fora a compreensão
científica sobre a qual aparentemente havia baseado o início do
"interlúdio". É um erro grosseiro!
De volta à entrevista, Žižek solta um emaranhado de sofismas como "A
'natureza' na Terra está tão adaptada às intervenções humanas, a
'contaminação' humana está a tal ponto incluída no frágil e instável
equilíbrio da reprodução 'natural', que a interrupção intempestiva da
ação humana causaria um desequilíbrio catastrófico. É isso precisamente
que demonstra que a humanidade não tem como retroceder". Ora, todas as
evidências que se tem de estudos diversos, que analisam tanto as
prováveis alterações climáticas esperadas a depender dos cenários de
emissão quanto seus impactos indicam que não há adaptação possível (com
um mínimo de salvaguarda para as maiorias sociais) para determinado
patamar de aprofundamento da crise ecológica; para um determinado nível
de aquecimento global. E aí, a urgência de incorporação da mudança
estrutural da base produtiva em nossa sociedade na pauta dos movimentos
sociais não é apenas uma "questão ideológica". Žižek fala de limites
ecológicos mas não os reconhece na prática e não entende a sua (deles)
profundidade.
Mas é no livro mesmo que Žižek se supera, ao comparar a catástrofe
climática que certamente advirá caso os estoques de metano sejam
liberados (ele cita o permafrost, mas não os clatratos do piso oceânico)
a um "acidente de carro que leva a uma amizade inesperada" [2].
Novamente ignorando, na prática, as pré-condições físicas e biológicas
para sobrevivência de nossa espécie (ou, na verdade, para a
sobrevivência digna de mais de 7 bilhões de seres humanos) e saltando
solenemente por sobre a noção mais básica de probabilidade, introduz um
otimismo injustificado, um negacionismo dos efeitos danosos, deletérios,
nocivos e - num cenário sem mitigação - catastróficos das alterações
climáticas.
Ora, o "acidente de carro" que termina em uma "amizade inesperada" é
coisa da ficção, da película citada. Na vida real, o que acidentes
sérios trazem, na ampla maioria dos casos, é morte, dor, sofrimento,
sequelas físicas e/ou mentais aos envolvidos ou, mesmo em casos leves,
contratempo e prejuízos materiais. Não, Žižek, a hipótese de que você,
ao atirar violentamente o seu carro contra outro (o primeiro que
aparecer), conheça um grande amigo, é mínima. O mais provável é que você
magoe ou mate alguém, magoe-se ou morra. É simplesmente assim. Não faz
sentido não temer um acidente de carro violento (e ao que eu saiba esse
temor justificado nunca foi limitador para que as pessoas tomem medidas
por mais segurança no trânsito, por transporte público ou por mobilidade
de uma forma geral). Não faz sentido achar que um acidente e os seus
impactos que podem ser evitados (com medidas de precaução simples como
evitando altas velocidades ou consumo de bebida alcóolica) seja tratado
como algo quase inevitável, ou como uma "contingência", como algo cujo
temor "paralise", muito menos como algo que traga expectativas
positivas. Assim é com a alteração climática.
Žižek, que não é um gato de um milhão de vidas, mas um ser humano com
uma só, estaria disposto a atirar-se de carro, em alta velocidade,
contra um obstáculo, na expectativa de um "resultado inesperadamente
positivo"? Duvido. É assim também no caso do destino do sistema
climático terrestre, hoje intrinsecamente ligado às escolhas da
humanidade no que diz respeito à matriz energética (e, em última
instância, à própria manutenção do modo de produção capitalista). Só há
uma Terra. Como diria Richard Alley, se fosse um video-game, eu
apertaria o botão, só por curiosidade, para ver o que aconteceria. Se eu
tivesse um milhão de Terras virtuais e pudesse, sem o sacrifício de
vida (não somente humana), atirar 999.999 em destinos incertos, minha
(neste caso justificadamente) irresponsável curiosidade me levaria a
tal. Mas não é um video-game e eu só tenho um planeta-morada. Para mim,
meus filhos, para os outros seres humanos, desta geração e das
seguintes, para a rica e variada teia biológica que ora o reveste. E por
isso, estou disposto a lutar para que um motorista irresponsável não o
atire contra o poste da alteração climática! Esse chauffeur
desastrado é a indústria de combustíveis fósseis e é Žižek, na prática,
junto com os negacionistas climáticos, que está embriagado. Se há uma
fuga da realidade muito mais perversa e condenável do que a causada pelo
consumo de ópio ou qualquer outro material que contenha substância
psicoativa é o negacionismo.
Alexandre Costa é doutorado em Ciência Atmosférica e professor na Universidade Estadual do Ceará. Artigo publicado no blogue O que você faria se soubesse o que eu sei?
Notas:
[1] As palavras de Žižek são: "não há razão para tratar os ecocéticos
como similares aos negadores do Holocausto - há uma lição dupla a ser
aprendida a partir deles sobre o aquecimento global: (1) o quanto há de
ideologia que é de fato investido em preocupações ecológicas e (2) quão
pouco se sabe sobre as reais consequências de nossas atividades no
ambiente natural". São afirmações vergonhosas, afinal os negacionistas
climáticos são, sim, análogos aos criacionistas e aos negadores do
Holocausto, vários deles têm ligações conhecidas com a direita
organizada e com a indústria de combustíveis fósseis, seu compromisso
com o conhecimento científico e com um debate honesto é, por conseguinte
nenhum, e seu único papel é confundir a opinião pública e atrasar a
tomada de consciência sobre a gravidade da crise climática e as ações
para combatê-la.
[2] O trecho completo é "ao invés de sucumbir ao terror dessa
perspectiva, é nesses casos que se deve manter a mente aberta a novas
possibilidades, tendo em mente que a 'natureza' é um mecanismo
contingencial multifacetado no qual catástrofes podem levar a resultados
inesperadamente positivos, como no filme 'Short Cuts', de Robert
Altman, no qual um acidente catastrófico de carro leva a uma amizade
inesperada".
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