O ato da doação eleitoral é um
indício de que o doador comunga das propostas do candidato, deseja que
ele o represente politicamente, seja por suas ideias, seja por sua
classe social, ou quer criar um vínculo por meio desse apoio em campanha
Por Leonardo Sakamoto**
Não há uma organização comercial ou um grupo
político reunindo proprietários rurais que tenham utilizado trabalho
escravo, até pela natureza criminosa dessa prática. Esses fazendeiros
estão associados aos sindicados rurais de seus municípios, que por sua
vez integram as federações estaduais – em âmbito nacional reunidas na
Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Além disso,
também fazem parte de organizações de atividades econômicas, como é o
caso de produtores de grão, algodão, cana, entre outros.
(Veja infográficos com os candidatos e partidos que receberam doações de campanha de escravagistas entre 2002 e 2012)
Considerando que esse tipo de mão de obra é usado para garantir
competitividade ao produtor, a sua adoção representa, na prática,
concorrência desleal com relação àqueles que operam dentro de formas
contratuais de trabalho. Contudo, as entidades têm defendido o associado
envolvido no crime, ignorando uma ação comercial lógica, que seria
retirá-lo do grupo ou suspendê-lo enquanto apresentasse pendências, para
evitar uma contaminação da imagem da entidade e do setor e,
consequentemente, perdas econômicas. Pois o que é preservado com essa
defesa não é um interesse comercial particular, mas a própria classe
social dos proprietários rurais.
Trabalho escravo não é resquício do processo de expansão do capital,
mas um de seus instrumentos. Fazendo uma analogia, o trabalho escravo
contemporâneo não é uma doença, mas sim uma febre, o sintoma de um
problema maior que se manifesta nas franjas do sistema. Portanto, a sua
erradicação não virá apenas com medidas mitigadoras, como a libertação
de trabalhadores, equivalentes a um remédio antitérmico – necessárias,
mas paliativas. É necessário um tratamento maior, com mudança da própria
estrutura do sistema, incluindo alteração na forma de expansão do
capital.
Um caso emblemático é o da proposta de emenda constitucional número
57A/1999 (ex-438/2001) que prevê o confisco de propriedades em que
trabalho escravo contemporâneo for encontrado. Ela pretende ser um
acréscimo ao artigo da Constituição que já contempla o confisco de áreas
em que são encontradas lavouras de psicotrópicos. A demora na sua
aprovação se dá por causa por pressões da bancada ruralista.
Por mais que a proporção de empregadores que utilizam trabalho
escravo contemporâneo seja pequena diante do universo de produtores
rurais, e tendo em vista o número reduzido de condenações por esse
crime, esses representantes políticos são contrários à proposta. Pois,
para eles, o que está em jogo é a propriedade da terra, capitalizada a
partir do século 19, considerada inviolável por parte dos seus
representados – os proprietários rurais. A sua manutenção e concentração
é condição fundamental para a acumulação por parte dos fazendeiros
pois, além de ser capital, é o locus onde se acumula o capital
através do trabalho. A PEC é, por esse ponto de vista, um risco à
existência da própria classe ruralista e, portanto, lutar contra a sua
aprovação representa mais do que manter a exploração de formas
não-contratuais de trabalho.
Só assim, no campo simbólico, é que se pode compreender a importância
do trâmite dessa proposta por ambos os lados da questão. Pois, na
prática, a aplicação da lei encontraria várias dificuldades nos
tribunais, sendo menos ampla do que desejam as entidades que atuam no
combate ao trabalho escravo.
A análise do comportamento das entidades de classe aponta nessa
direção. A CNA não nega a necessidade de que a escravidão contemporânea
seja erradicada, defendendo isso inclusive em suas publicações, mas
afirma que os seus associados não a utilizam. Embora isso não
corresponda à realidade.
Avaliando o cruzamento entre doações de campanha e a “lista suja” do
trabalho escravo, não há subsídios para afirmar que os eleitos atuem
efetivamente para o favorecimento desses empregadores nesse tema. Também
não há provas de que os empregadores-políticos beneficiaram a si
próprios. Para uma análise que comprovasse uma relação de causa e
efeito, seria necessário pesquisar os projetos e o comportamento desses
eleitos na análise de projetos que não dissessem respeito apenas ao
trabalho escravo contemporâneo, mas também, com relação às questões de
trabalho, fundiárias e preservação do meio ambiente.
Por exemplo, a comparação entre a lista de doadores e as listas de
votação da PEC 57A/1999 é inconclusiva. Muitos deputados seguem a
recomendação da bancada a que fazem parte. Além disso, a votação em
primeiro turno dessa PEC na Câmara ocorreu sob forte comoção pública
gerada pelo assassinato de quatro funcionários do Ministério do Trabalho
e Emprego que fiscalizavam propriedades rurais na região de Unaí,
Estado de Minas Gerais, em 2004. E o segundo turno, ocorrido em maio
2012, caiu bem no calendário eleitoral. Isso pode ter influenciado na
decisão dos deputados. Há parlamentares que eram contrários à aprovação
da PEC, mas nas votações em plenário, feita por voto aberto,
posicionaram-se a favor, provavelmente para não terem sua imagem
vinculada à manutenção dessa forma de exploração do trabalho em um
momento delicado como aquele.
O ato da doação é um indício de que o doador comunga das propostas do
candidato, deseja que ele o represente politicamente, seja por suas
ideias, seja por sua classe social ou quer criar um vínculo por meio
desse apoio em campanha. O benefício não precisaria vir em assuntos
diretamente relacionadas ao trabalho escravo contemporâneo, mas em
outros temas que dizem respeito à defesa da expansão do capital em
determinada região ou ramos de atividade, por exemplo. Portanto, com
base nesse levantamento, pode-se afirmar que esses empregadores estão
representados politicamente, mas não que esses representantes têm agido,
necessariamente, em prol de seus financiadores de campanha.
A escravidão contemporânea é a exploração mais degradante possível
dentro das formas não-contratuais de trabalho. Tendo em vista o seu
caráter ilegal, não há quem a defenda abertamente. A forma de justificar
os atos de fazendeiros flagrados com esse tipo de mão de obra,
portanto, é afirmar que o flagrante em questão não foi de trabalho
escravo – atitude tomada sistematicamente por associações de classe e
por parlamentares e detentores de cargos executivos que prestam apoio a
fazendeiros. Com a justificativa fraca e sem sustentação na realidade de
que falta definição para o tema na lei, atuam para barrar qualquer
restrição aos proprietários rurais que cometam esse crime.
É claro que não há projetos de leis tramitando no Congresso Nacional
com o objetivo de favorecer explicitamente a escravidão, mas há aqueles
que contribuiriam indiretamente. Como os que facilitariam a
terceirização ilegal e a diminuição de direitos trabalhistas e
dificultariam a atuação da fiscalização. Ou seja, projetos que atuam em
prol de um processo de descontratualização do trabalho, o que aumentaria
a margem de lucro das empresas através da economia em capital variável
e, portanto, sua capacidade de competição no mercado. Além disso, há
outros projetos que contribuiriam com o combate ao trabalho escravo,
além da PEC 438, que apresentam um trâmite lento no Congresso.
O então governador do Mato Grosso Blairo Maggi era considerado um dos
maiores produtores de soja do mundo e sócio da Amaggi, uma das maiores
exportadoras do grão no país. A empresa chegou a comprar soja de
propriedades presentes no cadastro de empregadores [de trabalhadores em
condições análogas à escravidão] e, hoje, afirma adotar critérios para a
compra de produto, limando produtores da “lista suja” de sua rede de
fornecedores. Blairo recebeu doação de um produtor que chegou a ser
envolvido com trabalho escravo pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Mas não se pode aplicar uma relação de causa e efeito entre as
doações de campanha e o comportamento do governador, que se insere mais
em uma lógica da manutenção do status quo dos proprietários
rurais. Mas o apoio que ele garantiu a sojicultores, cotonicultores e
pecuaristas para a expansão da fronteira agrícola no estado,
defendendo-os de acusações de trabalho escravo e desmatamento ilegal, é
suficiente para afirmar que há, pelo menos, uma sintonia política muito
fina entre eles. E que, nestes casos, a doação se mostra, em verdade, um
bom investimento.
* Este texto contém trechos da tese de doutorado “Os acionistas
da Casa-Grande: a reinvenção capitalista do trabalho escravo no Brasil
contemporâneo” (2007).
** Leonardo Sakamoto é jornalista, doutor em Ciência Política e coordenador da Repórter Brasil.Fonte: Repórter Brasil
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