Em dois flagrantes diferentes, 121
haitianos foram resgatados. Grupo de migrantes vivia em alojamento que,
segundo equipe de fiscalização, parecia uma senzala
Por Stefano Wrobles
Fonte: http://reporterbrasil.org.br/2014/01/imigrantes-haitianos-sao-escravizados-no-brasil/
O Haiti é o país em que ocorreu a mais famosa
revolta de escravos durante o período colonial. Em 1791, milhares de
pessoas começaram uma revolta que culminou na abolição da escravidão do
país, tornando-se o primeiro do mundo a abolir a prática. O processo
abalou proprietários de escravos em toda a América e inspirou diferentes
mobilizações em outros países. Mais de dois séculos depois, haitianos
voltam a ser escravizados, agora no Brasil. Ao todo, 121 migrantes foram
resgatados de condições análogas às de escravos em duas operações
diferentes realizadas em 2013. Na maior delas, em que 100 pessoas foram
resgatadas, o auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos, que acompanhou
ação de fiscalização pelo Ministério do Trabalho e Emprego, comparou a
situação em que um grupo estava alojado com a da escravidão do passado.
“Uma das casas parecia uma senzala da época da colônia, era
absolutamente precária. No fundo, havia um espaço grande com fogões a
lenha. A construção nem era de alvenaria”, afirmou.
A exploração de migrantes no Brasil está relacionada à ausência de políticas públicas adequadas,
que deixa milhares de pessoas em situação vulnerável. A estimativa é de
que 22 mil haitianos migraram para o país desde 2010, ano em que
aconteceu o mais intenso terremoto da história do país. O Brasil, à
frente das tropas da Organização das Nações Unidas (ONU) que invadiram e
ocupam o Haiti desde 2004, virou um dos destinos escolhidos entre os
desabrigados na tragédia.
Os dois casos de trabalho escravo recentes são os que mais ganharam
destaque e receberam atenção das autoridades. Movimentos sociais e
organizações que trabalham em defesa de direitos de migrantes ouvidas
pela reportagem alertam que os casos se multiplicam no país e que há
violações que não se tornam públicas.
Anglo American
O principal caso envolvendo a libertação de haitianos no Brasil até hoje culminou no resgate de 172 trabalhadores – entre eles, os 100 haitianos que viviam em condições degradantes. O flagrante de escravidão aconteceu em uma obra da mineradora Anglo American no município mineiro de Conceição do Mato Dentro, que tem população de 18 mil habitantes e fica a 160 quilômetros de Belo Horizonte. A fiscalização aconteceu em novembro de 2013 a pedido da Assembleia Legislativa de Minas Gerais depois que a chegada da mineradora foi discutida em uma audiência pública. “Houve um incremento de cerca de 8 mil trabalhadores por conta da presença da mineradora e a cidade não estava preparada”, explica Marcelo.
O principal caso envolvendo a libertação de haitianos no Brasil até hoje culminou no resgate de 172 trabalhadores – entre eles, os 100 haitianos que viviam em condições degradantes. O flagrante de escravidão aconteceu em uma obra da mineradora Anglo American no município mineiro de Conceição do Mato Dentro, que tem população de 18 mil habitantes e fica a 160 quilômetros de Belo Horizonte. A fiscalização aconteceu em novembro de 2013 a pedido da Assembleia Legislativa de Minas Gerais depois que a chegada da mineradora foi discutida em uma audiência pública. “Houve um incremento de cerca de 8 mil trabalhadores por conta da presença da mineradora e a cidade não estava preparada”, explica Marcelo.
Haitianos resgatados afirmam que foram informados de que não poderiam deixar o emprego antes de três meses |
As vítimas foram encontradas em diversos alojamentos, incluindo a
casa que, segundo o fiscal, lembrava uma senzala. Ainda de acordo com a
fiscalização, todos os resgatados viviam em condições degradantes. A
comida fornecida era de baixa qualidade e alguns dos trabalhadores
chegaram a ter hemorragia no estômago. Entre os brasileiros, foram
libertados migrantes nordestinos que a equipe verificou terem acabado
endividados após serem obrigados a pagar entre R$ 200 e R$ 400 como
custo de transporte para chegar até o local de trabalho, o que
caracterizou servidão por dívida. Além disso, diversos funcionários
haitianos disseram à fiscalização ter sido informados pelo empregador
que não poderiam deixar o trabalho antes de três meses, o que foi
rebatido pelo patrão como uma falha de compreensão dos migrantes.
Tanto a Anglo American quanto a Diedro, construtora contratada pela
Anglo American para a obra em que ocorreu o resgate, negam a
responsabilidade pelo caso. Os resgatados trabalhavam na construção
de casas onde viverão os empregados da mineradora, que planeja a
exploração de minério de ferro na região em um projeto de mais de US$ 5
bilhões, conforme anunciado no site da empresa. Procurada pela Repórter Brasil a Anglo American afirma , em nota,
que “atua rigorosamente de acordo com a legislação trabalhista e exige
de suas terceirizadas o mesmo” e informou que “possui um rígido controle
sanitário de suas contratadas, aplicando multas, notificações e
treinamentos sempre que identificados desvios”.
A Diedro afirma
ter sido “injustamente acusada de aliciamento na contratação desse grupo
[nordestinos]. Os sergipanos foram contratados de acordo com as normas
da legislação brasileira e a Diedro possui cópias de toda documentação,
carteiras de trabalho e contracheque”. As empresas firmaram um Termo de Ajuste de Conduta (TAC)
com o Ministério Público do Trabalho se comprometendo a regularizar a
situação de todas as vítimas e a pagar R$ 100 mil em indenização por
dano moral coletivo.
Minha Casa Minha Vida
Outra libertação envolvendo haitianos aconteceu em junho de 2013 na capital do Mato Grosso, Cuiabá. De acordo com a fiscalização, as 21 vítimas foram alojadas em uma casa em condições degradantes. Além de superlotada, faltava água com frequência e não havia camas para todos. Elas haviam sido contratadas para a construção de casas de um conjunto residencial financiado com verbas do programa de habitação do Governo Federal, Minha Casa Minha Vida, em que flagrantes de trabalho escravo têm sido constantes.
Outra libertação envolvendo haitianos aconteceu em junho de 2013 na capital do Mato Grosso, Cuiabá. De acordo com a fiscalização, as 21 vítimas foram alojadas em uma casa em condições degradantes. Além de superlotada, faltava água com frequência e não havia camas para todos. Elas haviam sido contratadas para a construção de casas de um conjunto residencial financiado com verbas do programa de habitação do Governo Federal, Minha Casa Minha Vida, em que flagrantes de trabalho escravo têm sido constantes.
Na carteira de trabalho, o registro foi feito em nome de uma empresa
terceirizada pela Sisan Engenharia, a construtora responsável pela obra.
Depois de duas semanas de trabalho, a terceirizada demitiu os
funcionários sem pagar nenhum salário, o que só aconteceu depois que a
fiscalização chegou ao local. Como os empregados trabalhavam na mesma
atividade-fim da Sisan, a terceirização foi considerada ilícita com base
na súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho e a empresa foi responsabilizada pelo problema. A Repórter Brasil procurou a Sisan para comentar o fato, mas a empreiteira não respondeu ao pedido de entrevista.
Longe de casa
O caminho percorrido entre o Haiti e o Brasil é longo e difícil. Do país caribenho, a maioria dos haitianos viaja dois mil quilômetros de avião para o Equador, que não exige visto de nenhum país do mundo. Por terra, eles cruzam a fronteira com o Peru e seguem viagem até Brasileia – um pequeno município acriano com cerca de 21 mil habitantes –, em um percurso de mais de 3,6 mil quilômetros.
O caminho percorrido entre o Haiti e o Brasil é longo e difícil. Do país caribenho, a maioria dos haitianos viaja dois mil quilômetros de avião para o Equador, que não exige visto de nenhum país do mundo. Por terra, eles cruzam a fronteira com o Peru e seguem viagem até Brasileia – um pequeno município acriano com cerca de 21 mil habitantes –, em um percurso de mais de 3,6 mil quilômetros.
Em janeiro de 2012, a obtenção de vistos de haitianos no Brasil foi
limitada a 1200 vistos permanentes de caráter humanitário por ano,
emitidos somente na embaixada brasileira em Porto Príncipe (no mesmo
mês, por pressão do governo brasileiro,
o Peru passou a exigir vistos dos haitianos que entrassem no país). A
limitação de 1200 vistos por ano caiu em abril de 2013 e, de acordo com o
Ministério das Relações Exteriores, foram emitidos mais de cinco mil
vistos aos migrantes do Haiti só no ano passado.
Quando os haitianos chegam a Brasileia, equipes do Sistema Nacional
de Emprego (SINE) – vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) –
e do Governo do Estado do Acre emitem os documentos necessários para
que os migrantes possam morar e trabalhar no Brasil, além de auxiliá-los
a conseguir emprego.
Empresas que contratam empregados em locais distantes são responsáveis por garantir a contratação e o transporte |
Nem sempre, porém, empregadores e trabalhadores têm recebido as
orientações corretas. No caso da Anglo American, representantes da
empresa afirmam que chegaram a consultar o próprio SINE e o Governo do
Acre, mas alegam não ter sido informados de que deveriam efetuar a
contratação antes da viagem do Acre para Minas Gerais, conforme
determina a lei. Trata-se de uma exigência da Instrução Normativa nº 90/2011 do MTE,
que prevê que a empresa que contrata empregos em locais distantes é
responsável pela segurança no transporte e por arcar com custos no caso
de eventuais acidentes que aconteçam no caminho. A medida evita a
superexploração em condições análogas às de escravos ao impor, também, a
necessidade de informar ao MTE sobre o transporte.
O auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos questionou a Secretaria de
Justiça e Direitos Humanos do Acre sobre o caso e recebeu como resposta que
a pasta “não é agência de emprego”. “Nos dispomos a fazer a ponte entre
empresa-haitiano por razões humanitárias”, diz o texto assinado por
Francisca Mirtes de Lima, coordenadora da Divisão de Apoio e Atendimento
aos Imigrantes e Refugiados, órgão subordinado à secretaria mencionada.
O posicionamento é questionado pelo auditor que fez o resgate dos
trabalhadores. “Como é que o Governo do Estado do Acre e o SINE
patrocinam essa contratação ao arrepio da lei e em uma situação de
vulnerabilidade tão acentuada?”, pergunta Marcelo.
A Repórter Brasil procurou ouvir o SINE no Acre, mas não
recebeu qualquer resposta do MTE até o fechamento desta matéria. O
secretário de Justiça e Direitos Humanos do Acre, Nilson Mourão, não
respondeu aos telefonemas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário