14 de jun. de 2011

DAR FUNDO NO POÇO.

DAR FUNDO NO POÇO.

Breve reflexão sobre o religioso irmão
Denilson Mariano da Silva [1]

Quando se cava um poço e se alcança um bom lençol d'água, é sinal de alegria: "Agora temos água boa e com fartura!". Porém em tempos de grande estiagem e de seca a água diminui, mistura-se com a lama. Quando isso aconte¬ce, é preciso "dar fundo no poço". Cavar mais, adentrar no lençol freático. No trabalho de dar fundo no poço, encon¬tramos muitos objetos que caíram ou foram jogados dentro dele, coisas que ficaram esquecidas e que já nem dávamos falta. Dar fundo no poço é uma tarefa difícil, até perigosa: pode-se encontrar laje de pedra, e há também o risco de desmoronamentos. Porém cavar mais fundo é caminho para que possamos continuar a ter aquela água boa dos começos.
Esta imagem do poço nos servirá de suporte para tratar¬mos da identidade, espiritualidade e missão do Religioso Ir¬mão na Igreja e na sociedade. Esta reflexão quer fazer me¬mória do Seminário de Religiosos Irmãos promovidos pela CLAR - Confederação Latino-Americana e Caribenha de Religiosos (as), que neste ano de 2009 celebra cinqüenta anos de fundação. O Seminário aconteceu na cidade de Lima (Peru), de 19 a 21 de março de 2009, animado pelo lema "Todos vocês são irmãos" (Mt 23,8c).
Dar fundo no poço significa descer às origens mais pro¬fundas, cavar fundo para buscar as motivações primigênias, aquelas que deram origem à Vida Religiosa em seu estágio inicial. É ir ao encontro daquele "primeiro amor" (cE. Ap 2,4-5) que não pode ser esquecido nem abandonado. As¬sim, para falar algo do Religioso Irmão de forma pertinente, há de se voltar à origem da Vida Religiosa enquanto tal. Esta busca pode ajudar a todos nós - aos Religiosos Irmãos, às religiosas irmãs, aos religiosos presbíteros e também aos membros dos Institutos seculares e Ordens Terceiras - a reavivar o específico de nossa Consagração religiosa, cla¬rificando ainda mais nossa missão na Igreja e na sociedade.
Adentrar no "lençol freático" da Vida Religiosa.
A Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus marcaram de tal modo a vida dos discípulos e das comunidades cristãs que as fizeram inaugurar um novo modo de viver e conviver. Como bem expressa Paulo: "Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim" (Gl2,20). Esta Igreja nascente enfrentou duras perseguições, muitos foram os mártires que deram sua vida por causa do Evangelho. Estavam no mundo como se não fossem do mundo. E, apesar dos problemas internos, conseguiram fazer uma caminhada de verdadeira fraternida¬de, sempre animados pelo exemplo de vida de Jesus.
Com o Edito de Milão (313), Diocleciano, vendo o en¬fraquecimento do Império Romano e o insucesso na perse¬guição aos cristãos, liberou o culto cristão e findou as per¬seguições. A Igreja saiu das casas e das catacumbas, ganhou templos públicos e grandes igrejas. Ganhou em número de fiéis, mas perdeu a qualidade do testemunho cristão. Ao sentir que a água estava meio suja, alguns cristãos, desejo¬sos de seguir a radicalidade da vida cristã, se afastaram dos povoados e foram viver no deserto. Em protesto ao distan¬ciamento da prática e do ensinamento de Jesus, "fugiam do mundo", procurando uma forma de seguir a Jesus Cristo mais de perto, através da prática do silêncio, da oração e da caridade. Esta iniciativa que, inicialmente, foi marcada por uma vida mais solitária, depois se organizou em comunida¬des e, aos poucos, deu origem ao "poço" da Vida Religiosa. Aí era possível encontrar a água limpa da vida a serviço do Evangelho e do Reino.
Esse projeto inicial de consagração ao Senhor era extrema¬mente simples. A "fuga do mundo" era marcada pelo sincero desejo de viver a aliança do Batismo de uma forma radical, amando a Deus e ao próximo. Era um ato de verdadeiro amor proveniente da descoberta de ser amado por Deus. A vida se convertia numa oferta de amor. Isso dava sentido ao aposto¬lado e à vida de comunidade que se espelhava na vivência dos primeiros cristãos, que tudo partilhavam, de forma que entre eles não havia necessitados (cf At 4,32-35). Consagração é aquela atitude através da qual, por amor, a pessoa se consagra a Deus de forma livre e gratuita. Assim, tudo o que acontece é contemplado pela ótica do amor radical a Deus e tudo é re-significado a partir da vontade e do projeto de Deus. É a partir de tal eixo original de consagração a Deus que deve¬mos buscar a identidade do Religioso Irmão.
Objetos esquecidos no fundo do poço
Ao revisitar a história da Vida Religiosa, vemos que, ao período áureo do monarquismo, no qual a vida era marcada pela procura de Deus e pelo serviço aos irmãos, seguiu-se uma forte e progressiva clericalização, a ponto de, no Con¬cílio de Viena, no ano de 1311, ficar estabelecido que todos os monges não impedidos juridicamente deviam receber a ordenação. Não nos cabe aqui fazer todo o percurso histó¬rico, mas essa progressiva clericalização da Vida Religiosa colocou em segundo plano o Religioso Irmão. Os "não or¬denados" passaram a ser tratados como "coadjutores" dos sacerdotes e hierarquicamente tratados como inferiores. Nesse tempo e na maioria dos casos, ser Religioso Irmão não era uma opção por parte da pessoa. Em geral, os superiores é que indicavam entre os candidatos quem seguiria o cami¬nho sacerdotal e quem ficaria como irmão. Os que mani¬festavam certa dificuldade para os estudos, ou já entravam em idade um pouco avançada, eram relegados aos trabalhos práticos e não tinham oportunidade de estudar, como os candidatos religiosos, ao sacerdócio.
Não havia espaço de discernimento nem condições para uma escolha verdadeiramente livre por parte do candidato. Some-se a isso que "a ordenação sacerdotal era vista como obra divina e possuía valor maior que os votos, vistos como simples obra humana" [ii]. Isto só começou a mudar com o sur¬gimento dos Institutos formados unicamente de Religiosos Irmãos. A partir daí é que a figura do irmão começou a ser novamente valorizada. Mesmo assim, ainda é fato que, no conjunto da Vida Religiosa, os Religiosos Irmãos representam uma minoria, em alguns casos não são compreendidos em sua opção de vida. Frequentemente são questionados: "por que não se ordenaram?". Este constante questionamento faz transparecer um sentimento de que lhes falta ainda algo em sua consagração.
Recuperando a água pura
No momento eclesial e social que vivemos, acreditamos que a vida dos Religiosos Irmãos exige, novamente, a tarefa de "dar fundo no poço". Vivemos, ainda, um clima ecle¬sial fortemente clerical, de sensível crise da Vida Religiosa, marcada por grande número de desistências e baixo número de vocações. Some-se a isso os contravalores que embaçam o testemunho cristão de religiosos e religiosas cuja vida se distancia em muito da prática e do ensinamento de Jesus. E, em meio a tudo isso, muitos não entendem nem valorizam a opção de vida do Religioso Irmão. Muitas vezes tal opção é abafada por uma pastoral vocacional e uma caminhada formativa ainda direcionadas mais para o ministério clerical do que para a Vida Religiosa enquanto tal.
Assim, dar fundo no poço, buscar as raízes da Vida Reli¬giosa, evidencia que ao Religioso Irmão não falta nada: a Vida Religiosa "constitui em si mesma um estado completo de profissão dos conselhos evangélicos" [iii]. E, ainda, o Papa João Paulo II afirmou, em discurso aos irmãos em 1980: "Não se pode pensar a Vida Religiosa na Igreja sem a presença desta particular vocação laical..." [iv]. Fica evidente que a vocação do Religioso'Irmão não pode ser compreendida pela contrapo¬sição ao sacerdócio ministerial do religioso presbítero, deve, antes, ser compreendida pela acentuação da Vida Religiosa enquanto tal: o seguimento radical a Jesus Cristo, pela vi¬vência da radicalidade de seu Batismo: procura de Deus e serviço aos irmãos.
Unicamente o Irmão dá um testemunho unívoco do que é a Vida Religiosa. No caso do religioso sacerdote, as pessoas têm a tendência a ver nele o sacerdote e não o religioso. No caso das religiosas, sua Vida Religiosa está manifesta a todos - pelo me¬nos nas atuais disposições da Igreja -, elas não podem pretender ao sacerdócio. O Religioso Irmão é quem, ante as possibilidades que lhe oferecem, escolhe um gênero de vida na Igreja, sim¬plesmente como religioso. Quem deseja compreender o que é a Vida Religiosa ... pois bem, que olhem para os irmãos. [v]
O encontro de irmãos promovido pela CLAR foi uma oportunidade para dar fundo no poço da vida dos Religiosos Irmãos na busca de reencontrar a água pura da consagração da vida ao Senhor e ao seu Reino.
O encontro dos Religiosos Irmãos em Lima
Em três dias de trabalho intenso e alegre, com troca de experiências, exposições, diálogos e discussões em grupos, os irmãos se dedicaram a: ver a realidade na qual os religio¬sos leigos estão inseridos na Igreja e na sociedade; julgar a partir da presença de Jesus-irmão e de uma Igreja-comunida¬de-de-iguais; agir, com ternura e vigor, com os olhos bem abertos e os pés bem no chão da realidade latino-americana e caribenha. Em tudo isso, sempre animados por celebra¬ções de fé e vida. Nesse Seminário, evidenciou-se que na vida dos Religiosos Irmãos há três dimensões que não se sepa¬ram e que exigem um cuidado especial: identidade, espiriitualidade e missão.
A identidade do Religioso Irmão se constrói no diálogo com todos os membros do Povo de Deus, com leigos e lei¬gas, com as irmãs religiosas e com os clérigos. A fraternida¬de é elemento essencial de seu ser consagrado, ela se inspira em Jesus, que quer uma comunidade de irmãos que vivam o amor mútuo. Assim, na rica diversidade de carismas, cultu¬ras, raças, idades e línguas, todos têm em comum o fato de serem seguidores de Jesus-irmão e viver esta comum fraterni¬dade no serviço ao Reino de Deus. O decisivo é a qualidade do seu testemunho. Se a vida não é entrega radical a serviço do Evangelho, o consagrado cai na passividade. Impor¬ta notar que a vida do Religioso Irmão desperta interesse na medida em que manifesta uma força interior que expressa a Boa-Notícia de Deus: a espiritualidade.
Sua espiritualidade nasce de uma relação pessoal com Deus, na qual se percebe o grande dom de ser amado por Deus-Pai e de ser irmão de Jesus. Os Religiosos Irmãos são chamados a ser irmãos de Cristo, irmãos entre si, irmãos de todos os seres humanos, "irmãos para uma maior fraterni¬dade na Igreja" [vi]. A Palavra de Deus deve estar no centro de sua caminhada espiritual e faz o irmão se encarnar na reali¬dade de pobreza e exclusão, vivendo a compaixão, a ternura e a misericórdia por todos(as) que sofrem. Jesus não apenas se fez humano, ele se fez irmão. Assim, a espiritualidade reconduz à fraternidade, que é dom e tarefa, verdadeiro espaço de humanização que impulsiona a missão de trans¬formar a sociedade com atitudes místico-proféticas. Ter a atitude de Jesus-irmão diante das pessoas: "Que queres que eu te faça" (Mc 10,51)'-
A missão do Religioso Irmão é anunciar a Jesus Cristo e seu Reino desde seu ser consagrado, permanecendo presente junto aos mais pobres e excluídos. Ele deve estar atento e marcar presença nas novas fronteiras, nas periferias e nas no¬vas realidades sociais, marcadas pela violência, pobreza, vio¬lação dos direitos humanos, falta de educação e saúde, crian¬ças abandonadas, mulheres agredidas e violentadas, com a juventude sem futuro, com os migrantes e a natureza destruída, a fim de promover a dignidade, a justiça e a vida em todas as suas manifestações. Jesus é o irmão maior, por isso não devemos nunca nos esquecer de nos chamar de irmãos.
O Seminário de Religiosos Irmãos quis ser algo mais do que "papéis e relatórios", quis ser um Kairós, um tempo de graça que permitisse aos participantes deixar-se conduzir pelo Espírito compartilhando experiências. Esse Seminário representou um grande chamado à continuidade da organi¬zação e animação dos irmãos em suas conferências nacionais e em seus núcleos regionais, sendo propagadores da expe¬riência vivida em Lima. Representou, ainda, um forte convite a revisar a formação inicial e permanente de modo a res¬ponder à nossa identidade, espiritualidade e missão de irmãos religiosos. E, a longo prazo, outro seminário latino-americano e caribenho para continuar cuidando da Vida Religiosa dos irmãos "para uma maior fraternidade no mundo".
Bibliografia
BARDOLET,Jaume Pujo!. El futuro de Ia vida religiosa laical (I).
Vida Religiosa, Boletin 7 (1987) 195-205.
BAZARRA, Carlos. Relaciones entre hermanos y clérigos en Ia vida religiosa. CLAR IV (out./dez. 2008) 28-37.
CIARDI, Fábio. A vocação do irmão a partir de uma teologia da vida religiosa. Convergência 271, abril 1994, 135-150.
JOÃO PAULO lI. Discurso aos irmãos religiosos dos institutos clericais e laicais de Roma. Disponível em: Erro! A referência de hiperlink não é válida. holyjather/john_paul_ii/speeches/1980/january> .
MATOS, Henrique Cristiano José. Vida religiosa; discipulado con¬sagrado em missão. Belo Horizonte: O Lutador, 2009.
PAULO VI. Decreto Peifectae caritatis, sobre a conveniente renova¬ção da vida religiosa. Vaticano, 1965.
PRADA, Oscar Augusto Elizalde. Presencia carismática deI reli¬gioso hermano en Ia Iglesia. Disponível em: , documentos (mimeo).
NICDEM, Edgar Genuino. Identidad e misión de los religiosos hermanos. CLAR IV (out./ dez. 2008) 9-17.
UNIÓN DE SUPERIORES GENERALES. Hermano en los ins¬titutos religiosos laicales. Roma, 1991. p. 6-7.
Questões para ajudar a leitura individual ou o debate em comunidade
1. Ao olhar para as origens da Vida Religiosa em sua busca de seguimento radical a Jesus, que precisamos rever em nosso modo de ser e agir como religiosos?
2. O trabalho de pastoral e animação vocacional enfa¬tiza mais o religioso presbítero. Por quê?
3. Qual a grande contribuição dos irmãos consagrados para a Vida Religiosa hoje? Dê exemplos.
FONTE: Revista Convergencia - Outrubro/2009, p. 642

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