Por: Rabino Alexandre Leone
Conta uma lenda rabínica que, na época do
segundo Templo, um grego procurou um sábio judeu de nome Shamai,
dizendo-lhe que se ele fosse capaz de enunciar a essência da Torá,
enquanto se equilibrava em um só pé, o grego se tornaria um prosélito
judeu. Tomando aquilo por uma brincadeira, Shamai, muito conhecido por
seu rigor, mandou-o embora. O grego então foi procurar outro sábio
chamado Hillel, muito conhecido por sua paciência e bom humor, e lhe
fez a mesma proposta. Ao ouvi-la, Hillel abriu um sorriso e, pondo-se
sobre um pé só, disse: “Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo
como a ti mesmo. O resto é comentário. Vai e estuda” (Essa lenda se
encontra no Talmud. Uma tradução pode ser encontrada em "Um tesouro do
folclore judaico." AUSUBEL, Nathan. Rio de Janeiro: Koogan, 1989.
Coleção Judaica, v. 8. p. 72).
A maioria das pessoas, judias ou não, ao ouvir ou ler essa lenda, é facilmente tentada a se encantar com a resposta de Hillel e encarar Shamai com um olhar bem menos simpático. É verdade que a Halakhá, a lei comunitária judaica que baliza a conduta ética ideal, segue o caminho de Hillel. Há em Shamai, porém, algo de yidishkeit, do modo judaico de agir, que essa lenda não encobre, ainda que demonstre, claramente, a resposta de Hillel como a mais sábia. O Judaísmo tem sido, ao longo de seus quatro mil anos de história, uma experiência coletiva inseparável do Povo Judeu. Essa experiência religiosa e espiritual não deve ser encarada como uma teoria, pois ela permeia a vida cotidiana de pessoas reais e é permeada por ela. Os sábios jamais foram divinizados e encarados como perfeitos, e também os tolos e os malvados jamais foram encarados como não fazendo parte da alma coletiva de Israel. A palavra Israel, por sinal, admite muitas traduções e, se num extremo, pode ser entendida como "O Guerreiro de Deus", num outro, também pode significar "Aquele que Luta Contra Deus". Lutando com e contra Deus, e temos os profetas como testemunhas dessa tensão, forjou-se uma experiência de intimidade do humano com o divino, que por isso mesmo tornou-se universal, ainda que tenha permanecido como experiência particular de um povo.
Três são as bases da experiência religiosa judaica: Deus, Sua Revelação e o Humano. Em termos judaicos, elas aparecem como YHVH (Aquele Que É Foi E Será Cujo Nome É Impronunciável), a Torá (que não revela segredos metafísicos mas, antes, o caminho do humano para sua elevação e, através dela, a de todo o planeta) e a existência dos filhos do Pacto, isto é, Israel (aqueles que tiveram a khutspá (Pronuncia-se o KH como o j em espanhol ou o ch em alemão, como na palavra Bach), a audácia, de lutar com e contra Deus ao mesmo tempo e que carregam na própria carne o sinal dessa união coletiva e intergeracional).
A liturgia diária tradicional recomenda que, durante as orações da noite e da manhã, sejam recitados um conjunto de trechos da Torá conhecidos como Shemá Israel, Ouve Israel, pois começam com a frase: Ouve Israel YHVH nosso Deus YHVH é único (Deuteronômio, 6:4). A tradição a explica como o testemunho diário da unidade divina. O judeu observante pela manhã, mesmo que esteja sozinho, irá recitá-la em voz alta, alongando-se ao pronunciar a palavra único, com as quatro franjas de seu manto de orações (Tsitsit, franjas colocadas nas quatro pontas do manto de orações, chamado talit, para que sejam vistas – Números, 16:37) nas mãos e de olhos fechados. O fechar dos olhos representa a impossibilidade de ver a Deus, isto é, abarcá-lo ou compreendê-lo racionalmente e também ressalta o papel do ato de escutar, entendido pela tradição como algo feito pelo coração. Quando em comunidade, o recitar, com os olhos fechados, ao ouvir inúmeras outras vozes se entrelaçando, é uma experiência de integração a um todo que transcende o pessoal. Aqui, talvez, esteja a finalidade do testemunho da unidade divina.
O monoteísmo, enquanto experiência religiosa, é a característica básica da religião judaica há quatro mil anos. Isto não implica apenas numa monolatria, que seria a devoção a um deus específico – o Nosso. Antes, é a tomada de consciência da Divindade como única, universalmente. Deus é chamado pelos judeus por vários nomes, cada um ressaltando uma característica que, na experiência politeísta, é personificada em vários deuses. O nome Elohim, por exemplo, que é geralmente traduzido como Deus, num plural majestoso, também pode ser entendido como os deuses. Os vários nomes pelos quais É chamado são, meramente, nomes acessíveis à consciência e à razão humana. O Nome Revelado permanece impronunciável como um sinal da impossibilidade da compreensão da essência de Deus. Ao longo das gerações, a percepção de Deus tem se transformado.
Na Bíblia, a concepção de Deus aparece, muitas vezes, de forma antropomórfica. Muito já se falou sobre este antropomorfismo. As concepções evolucionistas apresentam esse antropomorfismo como uma forma mais primitiva de conceber Deus. Uma leitura mais profunda, porém, deixa claro que tal antropomorfismo já é concebido na Bíblia como, antes de mais nada, algo simbólico. Deus não se parece a nada que exista neste universo e, por isso, nas tábuas da aliança, o segundo mandamento proíbe a feitura de imagens divinas.
Maimônides, na Idade Média, se posiciona claramente de forma anti-antropomórfica, buscando demonstrar que não só as concepções antropomórficas têm a ver com contingências de época e da língua hebraica como vai mais longe: só podemos dar a Deus características na negativa, ou seja, dizer aquilo que Ele não é. No século XV, ao explicar o judaísmo para o imperador da China, os judeus de K’aifengfu descrevem Deus usando termos chineses como T’ien Tao, o Tao Celestial (AUSUBEL, Nathan. Um tesouro do folclore judaico. Rio de Janeiro: Koogan, 1989. Coleção Judaica, v. 8. p.334). Já Moshé Khaim Luzzato, na Itália do século XVIII, descreve Deus como “o Ser primário, sem começo nem fim, que trouxe todas as coisas à existência e continua sustentando-as”. Segundo Luzzato, “a verdadeira natureza de Deus não pode ser compreendida por outro ser que não seja Ele Mesmo” (LUZZATO, M. O caminho de Deus. Anotações de Aryeh Kaplan. Editora Maayanot, 1992. p. 31). Em pleno século XX Martin Buber descreverá Deus como o Tu Eterno, inacessível ao conhecimento, mas acessível através do diálogo e do encontro. Todas essas visões têm, basicamente, dois pontos em comum: a idéia de El-Khai, Deus Vivo, e a idéia de que existe uma ética para o humano, ética que é derivada da existência de Deus.
O fundamento da ética judaica é a Torá. A palavra Torá tem a mesma raiz do verbo “atirar mirando”, que é a mesma da palavra professor. A tradução de Torá por “lei” é uma tradução imprópria: a idéia mais próxima é a de “ensinamento divino”, sendo a lei apenas um aspecto da Torá. Basicamente, a Torá busca ensinar os fundamentos para a santificação da vida humana nesta existência e disto deriva o conceito de trilhar os caminhos de Deus. A Halakhá (A palavra Halakhá vem da mesma raiz do o verbo caminhar e tem como fontes principais a parte legal do Talmud e as Responsas rabínicas), a lei comunitária judaica, que vem a partir das interpretações da Torá, por diversas gerações de rabinos, é também o paradigma da conduta pessoal concreta e traz esta ética aplicada à vida cotidiana, através das gerações. Mais do que uma série de afirmações em forma de credo, a Torá comanda ações neste mundo, isto é, mitsvot ou mandamentos. Por um lado, a Torá é um texto escrito e imutável – esta idéia de imutabilidade é colocada tão em prática que, ainda hoje, o texto é mantido e lido na forma de rolos de pergaminho com um cantilar próprio. A produção manual de um destes rolos da Torá, também chamado de Sefer-Torá, é cuidadosamente estabelecida, com leis que abordam tanto os materiais utilizados como a posição de cada letra na página e mesmo o tipo de pessoa que está apta a escrever um Sefer-Torá.
Por outro lado, a Torá é também a tradição oral (No início da Diáspora, a Torá Oral foi codificada nos tratados da Mishná - século II - e comentada na Guemará - aprox. século V. Essas duas obras formam o Talmud. Após essa publicação, outros Tratados e Responsas rabínicas foram escritos, entre eles os mais famosos são o Mishné Torá de Maimônides - século XII - e o Shulkhan Arukh, de Joseph Caro - século XVI), o ensinamento dos sábios de Israel interpretando a Torá através das gerações. Para cada ponto da vida, da liturgia ao comércio, da vida sexual ao tratamento dispensado aos animais, da guerra às regras de boa convivência, lá o judeu tem uma lâmpada para seus pés e uma luz para seu caminho. Tanto a Torá Escrita como a Torá Oral são, porém, uma única Torá, fruto da revelação do Sinai. A entrega da Torá no monte Sinai é um acontecimento mítico, não fazendo aqui nenhuma diferença, para nossa discussão, o acontecimento do fato histórico ou não. O caráter fundante da revelação do Sinai é ser o símbolo do selamento do Brit, o Pacto de Israel com Deus. É aqui que também reside a característica peculiar da revelação na tradição judaica, seu caráter coletivo, pois Deus se revela inicialmente a todo o povo e ao mesmo tempo. Os místicos afirmam que todo o povo significa que todos os judeus de todas as gerações receberam a Torá no Sinai, o que dá à revelação pessoal sempre um caráter coletivo, pois ela é um eco da revelação do Sinai.
Outra peculiaridade da revelação é que nela Deus não revela Sua essência mas, antes, a Sua vontade. Uma vez entregue aos homens, porém, cumpre a estes interpretá-la através do tipo de consciência de cada geração, pois a Torá “não está no céu” (Deuteronômio, 30:11-14). Este é o argumento básico para a validação da interpretação rabínica.
O Povo Judeu não constitui uma unidade étnica, pois os dois mil anos de Diáspora permitiram o aparecimento de muitos grupos com língua e culturas diferentes dentro do povo judeu. O judeu ashkenazi, branco e de origem européia, se diferencia tanto do judeu etíope quanto o judeu secular americano ou israelense se diferencia dos grupos ultra-ortodoxos. Não se pode dizer também que o povo judeu seja uma comunidade de fiéis, com uma crença em comum, pois, fora um grupo muito reduzido de crenças básicas, conhecemos, hoje em dia, como na verdade sempre houve, resultados muito diferentes daquilo que Hillel chamou de “os comentários”. O que assombra, no entanto, é a possibilidade de nos reconhecermos como os descendentes de Avraham, nosso pai e, ao mesmo tempo, o reconhecimento mútuo entre os vários grupos por fazermos parte de uma grande comunidade: Am Israel (O Povo de Israel). Quando nos reencontramos no século XX nos países da América e, principalmente, em Israel, nos descobrimos como uma microhumanidade de gente proveniente das mais diversas partes do mundo. Mordekhai Kaplan vê no povo judeu uma “nacionalidade ética”, o ideal de uma humanidade pacífica. O pensador Abraham Ioshua Heschel disse, a respeito disto, “os judeus são um povo que, para ser um povo, têm de ser mais do que um povo” (The Earth is the Lord.s and The Shabbath. New York: Ed. Harper & Row Torchbook, 1966. p. 64).
A comunidade tradicional da Diáspora, que se seguiu à destruição de Jerusalém e seu Templo, nos anos 70 pelos romanos, entrou em crise com o surgimento da modernidade. Não deixa de ser interessante que, no mesmo ano em que Colombo saía com suas caravelas, os judeus eram expulsos da Espanha. No Ocidente, a crise da comunidade tradicional se aprofundou com a emancipação dos judeus nos estados burgueses. A partir do século XVIII, num processo cheio de idas e vindas, os judeus conquistaram direitos civis o que, por um lado, criou um problema conhecido no meio judaico como a assimilação, isto é, a perda da identidade judaica em troca do reconhecimento e da participação sociais. Por outro lado, intensificou as reações de preconceito anti-semita, o que gerou ações defensivas dos judeus para com a sociedade em geral que variam de país para país. O Brasil, neste contexto, aparece como um país onde o preconceito anti-semita isolado é fato bastante raro como fenômeno cultural ou de massas.
Dentro do âmbito religioso, a emancipação propiciou o aparecimento de três linhas básicas dentro do judaísmo moderno: a Reforma, uma linha que sustenta a prevalência da modernidade sobre a tradição; o movimento Conservativo, que sustenta a possibilidade do diálogo da tradição com a modernidade uma vez que este foi sempre o caminho da tradição em todas as épocas; e, finalmente, a Ortodoxia, que é uma reação (mais moderada ou mais fundamentalista, dependendo do grupo) à sociedade moderna e seu modo de vida. Muitos pensadores judeus, que se debruçaram sobre questões da espiritualidade do ponto de vista judaico, não podem, no entanto, ser classificados em nenhuma dessas tendências religiosas, entre eles podemos citar: Martin Buber, Franz Rosensweig e Emmanuel Lévinas, apenas para designar os mais conhecidos do público em geral. Há, nesses últimos, uma tensão especial que permeia suas vidas e obras, o pressentimento de que algo para além da Modernidade está para acontecer.
No decorrer do século XX, dois acontecimentos marcaram profundamente o consciente e o inconsciente coletivos do povo judeu e serão, daqui para frente, cada vez mais importantes em sua experiência espiritual: o genocídio de um terço dos judeus do mundo, durante a barbárie nazista, conhecido como o Holocausto, e o aparecimento de uma terceira reunião judaica na Terra de Israel, quase dois mil anos depois da última. Esses dois acontecimentos, únicos na história humana e judaica, levarão, possivelmente, várias gerações para serem melhor compreendidos em toda intensidade de seu significado. Esses acontecimentos deverão ser vistos à luz da nova consciência eco-planetária que agora começa a florescer. A Torá nos ensina a observar os ciclos cósmicos, em nós e na Natureza, e a ver a eterna renovação na vida e na morte. A Tradição, enquanto memória coletiva viva, enriqueceu-se muitíssimo com essas vivências que chegam quase ao limite da existência humana e que clamam pela renovação espiritual. Como dizia Rav Kook : “O antigo se renovará e o novo santificará”.
Publicado em: LEONE, A.G. - Uma Apresentação do Judaísmo, in Revista do 1o Ciclo de Estudos da Religião, UFOP, 1997. P.11-19 (repassado diretamente pelo autor a mim no dia 15 de abril de 2010).
A maioria das pessoas, judias ou não, ao ouvir ou ler essa lenda, é facilmente tentada a se encantar com a resposta de Hillel e encarar Shamai com um olhar bem menos simpático. É verdade que a Halakhá, a lei comunitária judaica que baliza a conduta ética ideal, segue o caminho de Hillel. Há em Shamai, porém, algo de yidishkeit, do modo judaico de agir, que essa lenda não encobre, ainda que demonstre, claramente, a resposta de Hillel como a mais sábia. O Judaísmo tem sido, ao longo de seus quatro mil anos de história, uma experiência coletiva inseparável do Povo Judeu. Essa experiência religiosa e espiritual não deve ser encarada como uma teoria, pois ela permeia a vida cotidiana de pessoas reais e é permeada por ela. Os sábios jamais foram divinizados e encarados como perfeitos, e também os tolos e os malvados jamais foram encarados como não fazendo parte da alma coletiva de Israel. A palavra Israel, por sinal, admite muitas traduções e, se num extremo, pode ser entendida como "O Guerreiro de Deus", num outro, também pode significar "Aquele que Luta Contra Deus". Lutando com e contra Deus, e temos os profetas como testemunhas dessa tensão, forjou-se uma experiência de intimidade do humano com o divino, que por isso mesmo tornou-se universal, ainda que tenha permanecido como experiência particular de um povo.
Três são as bases da experiência religiosa judaica: Deus, Sua Revelação e o Humano. Em termos judaicos, elas aparecem como YHVH (Aquele Que É Foi E Será Cujo Nome É Impronunciável), a Torá (que não revela segredos metafísicos mas, antes, o caminho do humano para sua elevação e, através dela, a de todo o planeta) e a existência dos filhos do Pacto, isto é, Israel (aqueles que tiveram a khutspá (Pronuncia-se o KH como o j em espanhol ou o ch em alemão, como na palavra Bach), a audácia, de lutar com e contra Deus ao mesmo tempo e que carregam na própria carne o sinal dessa união coletiva e intergeracional).
A liturgia diária tradicional recomenda que, durante as orações da noite e da manhã, sejam recitados um conjunto de trechos da Torá conhecidos como Shemá Israel, Ouve Israel, pois começam com a frase: Ouve Israel YHVH nosso Deus YHVH é único (Deuteronômio, 6:4). A tradição a explica como o testemunho diário da unidade divina. O judeu observante pela manhã, mesmo que esteja sozinho, irá recitá-la em voz alta, alongando-se ao pronunciar a palavra único, com as quatro franjas de seu manto de orações (Tsitsit, franjas colocadas nas quatro pontas do manto de orações, chamado talit, para que sejam vistas – Números, 16:37) nas mãos e de olhos fechados. O fechar dos olhos representa a impossibilidade de ver a Deus, isto é, abarcá-lo ou compreendê-lo racionalmente e também ressalta o papel do ato de escutar, entendido pela tradição como algo feito pelo coração. Quando em comunidade, o recitar, com os olhos fechados, ao ouvir inúmeras outras vozes se entrelaçando, é uma experiência de integração a um todo que transcende o pessoal. Aqui, talvez, esteja a finalidade do testemunho da unidade divina.
O monoteísmo, enquanto experiência religiosa, é a característica básica da religião judaica há quatro mil anos. Isto não implica apenas numa monolatria, que seria a devoção a um deus específico – o Nosso. Antes, é a tomada de consciência da Divindade como única, universalmente. Deus é chamado pelos judeus por vários nomes, cada um ressaltando uma característica que, na experiência politeísta, é personificada em vários deuses. O nome Elohim, por exemplo, que é geralmente traduzido como Deus, num plural majestoso, também pode ser entendido como os deuses. Os vários nomes pelos quais É chamado são, meramente, nomes acessíveis à consciência e à razão humana. O Nome Revelado permanece impronunciável como um sinal da impossibilidade da compreensão da essência de Deus. Ao longo das gerações, a percepção de Deus tem se transformado.
Na Bíblia, a concepção de Deus aparece, muitas vezes, de forma antropomórfica. Muito já se falou sobre este antropomorfismo. As concepções evolucionistas apresentam esse antropomorfismo como uma forma mais primitiva de conceber Deus. Uma leitura mais profunda, porém, deixa claro que tal antropomorfismo já é concebido na Bíblia como, antes de mais nada, algo simbólico. Deus não se parece a nada que exista neste universo e, por isso, nas tábuas da aliança, o segundo mandamento proíbe a feitura de imagens divinas.
Maimônides, na Idade Média, se posiciona claramente de forma anti-antropomórfica, buscando demonstrar que não só as concepções antropomórficas têm a ver com contingências de época e da língua hebraica como vai mais longe: só podemos dar a Deus características na negativa, ou seja, dizer aquilo que Ele não é. No século XV, ao explicar o judaísmo para o imperador da China, os judeus de K’aifengfu descrevem Deus usando termos chineses como T’ien Tao, o Tao Celestial (AUSUBEL, Nathan. Um tesouro do folclore judaico. Rio de Janeiro: Koogan, 1989. Coleção Judaica, v. 8. p.334). Já Moshé Khaim Luzzato, na Itália do século XVIII, descreve Deus como “o Ser primário, sem começo nem fim, que trouxe todas as coisas à existência e continua sustentando-as”. Segundo Luzzato, “a verdadeira natureza de Deus não pode ser compreendida por outro ser que não seja Ele Mesmo” (LUZZATO, M. O caminho de Deus. Anotações de Aryeh Kaplan. Editora Maayanot, 1992. p. 31). Em pleno século XX Martin Buber descreverá Deus como o Tu Eterno, inacessível ao conhecimento, mas acessível através do diálogo e do encontro. Todas essas visões têm, basicamente, dois pontos em comum: a idéia de El-Khai, Deus Vivo, e a idéia de que existe uma ética para o humano, ética que é derivada da existência de Deus.
O fundamento da ética judaica é a Torá. A palavra Torá tem a mesma raiz do verbo “atirar mirando”, que é a mesma da palavra professor. A tradução de Torá por “lei” é uma tradução imprópria: a idéia mais próxima é a de “ensinamento divino”, sendo a lei apenas um aspecto da Torá. Basicamente, a Torá busca ensinar os fundamentos para a santificação da vida humana nesta existência e disto deriva o conceito de trilhar os caminhos de Deus. A Halakhá (A palavra Halakhá vem da mesma raiz do o verbo caminhar e tem como fontes principais a parte legal do Talmud e as Responsas rabínicas), a lei comunitária judaica, que vem a partir das interpretações da Torá, por diversas gerações de rabinos, é também o paradigma da conduta pessoal concreta e traz esta ética aplicada à vida cotidiana, através das gerações. Mais do que uma série de afirmações em forma de credo, a Torá comanda ações neste mundo, isto é, mitsvot ou mandamentos. Por um lado, a Torá é um texto escrito e imutável – esta idéia de imutabilidade é colocada tão em prática que, ainda hoje, o texto é mantido e lido na forma de rolos de pergaminho com um cantilar próprio. A produção manual de um destes rolos da Torá, também chamado de Sefer-Torá, é cuidadosamente estabelecida, com leis que abordam tanto os materiais utilizados como a posição de cada letra na página e mesmo o tipo de pessoa que está apta a escrever um Sefer-Torá.
Por outro lado, a Torá é também a tradição oral (No início da Diáspora, a Torá Oral foi codificada nos tratados da Mishná - século II - e comentada na Guemará - aprox. século V. Essas duas obras formam o Talmud. Após essa publicação, outros Tratados e Responsas rabínicas foram escritos, entre eles os mais famosos são o Mishné Torá de Maimônides - século XII - e o Shulkhan Arukh, de Joseph Caro - século XVI), o ensinamento dos sábios de Israel interpretando a Torá através das gerações. Para cada ponto da vida, da liturgia ao comércio, da vida sexual ao tratamento dispensado aos animais, da guerra às regras de boa convivência, lá o judeu tem uma lâmpada para seus pés e uma luz para seu caminho. Tanto a Torá Escrita como a Torá Oral são, porém, uma única Torá, fruto da revelação do Sinai. A entrega da Torá no monte Sinai é um acontecimento mítico, não fazendo aqui nenhuma diferença, para nossa discussão, o acontecimento do fato histórico ou não. O caráter fundante da revelação do Sinai é ser o símbolo do selamento do Brit, o Pacto de Israel com Deus. É aqui que também reside a característica peculiar da revelação na tradição judaica, seu caráter coletivo, pois Deus se revela inicialmente a todo o povo e ao mesmo tempo. Os místicos afirmam que todo o povo significa que todos os judeus de todas as gerações receberam a Torá no Sinai, o que dá à revelação pessoal sempre um caráter coletivo, pois ela é um eco da revelação do Sinai.
Outra peculiaridade da revelação é que nela Deus não revela Sua essência mas, antes, a Sua vontade. Uma vez entregue aos homens, porém, cumpre a estes interpretá-la através do tipo de consciência de cada geração, pois a Torá “não está no céu” (Deuteronômio, 30:11-14). Este é o argumento básico para a validação da interpretação rabínica.
O Povo Judeu não constitui uma unidade étnica, pois os dois mil anos de Diáspora permitiram o aparecimento de muitos grupos com língua e culturas diferentes dentro do povo judeu. O judeu ashkenazi, branco e de origem européia, se diferencia tanto do judeu etíope quanto o judeu secular americano ou israelense se diferencia dos grupos ultra-ortodoxos. Não se pode dizer também que o povo judeu seja uma comunidade de fiéis, com uma crença em comum, pois, fora um grupo muito reduzido de crenças básicas, conhecemos, hoje em dia, como na verdade sempre houve, resultados muito diferentes daquilo que Hillel chamou de “os comentários”. O que assombra, no entanto, é a possibilidade de nos reconhecermos como os descendentes de Avraham, nosso pai e, ao mesmo tempo, o reconhecimento mútuo entre os vários grupos por fazermos parte de uma grande comunidade: Am Israel (O Povo de Israel). Quando nos reencontramos no século XX nos países da América e, principalmente, em Israel, nos descobrimos como uma microhumanidade de gente proveniente das mais diversas partes do mundo. Mordekhai Kaplan vê no povo judeu uma “nacionalidade ética”, o ideal de uma humanidade pacífica. O pensador Abraham Ioshua Heschel disse, a respeito disto, “os judeus são um povo que, para ser um povo, têm de ser mais do que um povo” (The Earth is the Lord.s and The Shabbath. New York: Ed. Harper & Row Torchbook, 1966. p. 64).
A comunidade tradicional da Diáspora, que se seguiu à destruição de Jerusalém e seu Templo, nos anos 70 pelos romanos, entrou em crise com o surgimento da modernidade. Não deixa de ser interessante que, no mesmo ano em que Colombo saía com suas caravelas, os judeus eram expulsos da Espanha. No Ocidente, a crise da comunidade tradicional se aprofundou com a emancipação dos judeus nos estados burgueses. A partir do século XVIII, num processo cheio de idas e vindas, os judeus conquistaram direitos civis o que, por um lado, criou um problema conhecido no meio judaico como a assimilação, isto é, a perda da identidade judaica em troca do reconhecimento e da participação sociais. Por outro lado, intensificou as reações de preconceito anti-semita, o que gerou ações defensivas dos judeus para com a sociedade em geral que variam de país para país. O Brasil, neste contexto, aparece como um país onde o preconceito anti-semita isolado é fato bastante raro como fenômeno cultural ou de massas.
Dentro do âmbito religioso, a emancipação propiciou o aparecimento de três linhas básicas dentro do judaísmo moderno: a Reforma, uma linha que sustenta a prevalência da modernidade sobre a tradição; o movimento Conservativo, que sustenta a possibilidade do diálogo da tradição com a modernidade uma vez que este foi sempre o caminho da tradição em todas as épocas; e, finalmente, a Ortodoxia, que é uma reação (mais moderada ou mais fundamentalista, dependendo do grupo) à sociedade moderna e seu modo de vida. Muitos pensadores judeus, que se debruçaram sobre questões da espiritualidade do ponto de vista judaico, não podem, no entanto, ser classificados em nenhuma dessas tendências religiosas, entre eles podemos citar: Martin Buber, Franz Rosensweig e Emmanuel Lévinas, apenas para designar os mais conhecidos do público em geral. Há, nesses últimos, uma tensão especial que permeia suas vidas e obras, o pressentimento de que algo para além da Modernidade está para acontecer.
No decorrer do século XX, dois acontecimentos marcaram profundamente o consciente e o inconsciente coletivos do povo judeu e serão, daqui para frente, cada vez mais importantes em sua experiência espiritual: o genocídio de um terço dos judeus do mundo, durante a barbárie nazista, conhecido como o Holocausto, e o aparecimento de uma terceira reunião judaica na Terra de Israel, quase dois mil anos depois da última. Esses dois acontecimentos, únicos na história humana e judaica, levarão, possivelmente, várias gerações para serem melhor compreendidos em toda intensidade de seu significado. Esses acontecimentos deverão ser vistos à luz da nova consciência eco-planetária que agora começa a florescer. A Torá nos ensina a observar os ciclos cósmicos, em nós e na Natureza, e a ver a eterna renovação na vida e na morte. A Tradição, enquanto memória coletiva viva, enriqueceu-se muitíssimo com essas vivências que chegam quase ao limite da existência humana e que clamam pela renovação espiritual. Como dizia Rav Kook : “O antigo se renovará e o novo santificará”.
Publicado em: LEONE, A.G. - Uma Apresentação do Judaísmo, in Revista do 1o Ciclo de Estudos da Religião, UFOP, 1997. P.11-19 (repassado diretamente pelo autor a mim no dia 15 de abril de 2010).
Fonte: http://www.edt.edu.br/artigo-01-06-10.html
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