1 de jun. de 2011

Carta aberta da Conferência Equatoriana de Religiosos sobre a situação em Sucumbíos

Carta aberta da Conferência Equatoriana de Religiosos sobre a situação em Sucumbíos

Publicamos aqui a carta aberta da Conferência Equatoriana de Religiosos - CER sobre a situação do vicariato de Sucumbíos, no Equador.
A carta foi publicada no blog da Igreja de San Miguel de Sucumbíos - Isamis, 23-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Com profunda dor e desconcerto, fomos testemunhas, desde o dia 30 de outubro do ano passado, de uma série de acontecimentos que são de domínio público com relação à Igreja de San Miguel de Sucumbíos. Vários pronunciamentos da Junta Diretiva da CER, a partir desse momento, expressaram sua postura de solidariedade e de proximidade com o modelo de Igreja e com a obra promovida por Dom Gonzalo López, assim como sua preocupação pela Isamis, sinal e referência evangélicos para outras Igrejas particulares do Equador e da América Latina.
Várias congregações religiosas participaram e continuam participando ativamente no projeto pastoral e missionário dessa igreja local por muitos anos. E a Vida Religiosa equatoriana sentiu o impulso do Espírito na prática da inserção, do profetismo, da justiça e da paz, do diálogo aberto com todos, da participação ativa dos leigos nos diversos ministérios e nas decisões eclesiais, da organização popular inspirada e gestada no seio do compromisso cristão promovido pela Isamis, da opção pelos pobres, pelos jovens, pelos indígenas e pelos afrodescendentes.
Dom Gonzalo, os irmãos carmelitas e a vida de Sucumbíos, assim como os agentes pastorais da Isamis, decidiram há muito tempo se enlodar com a esperança de uma selva com mais vida, semear-se em uma zona fronteiriça conflitiva, comprometer-se pela defesa terra e dos povos e trabalhar corajosamente para unir fé e vida, Palavra e libertação. A CER reconhece agradecida tudo o que a essa Igreja evangelicamente comunitária fez para encarnar as opções da Vida Religiosa da América Latina e do Caribe (CLAR) e do Equador (CER).
Amamos entranhavelmente a nossa Igreja nas suas diferentes facetas e queremos, por fidelidade ao Evangelho, que ela seja realmente "um lugar de verdade e de amor, de liberdade, de justiça e de paz..." [1]. Desejamos decididamente transitar pelos caminhos da comunhão com ela, como o próprio João Paulo II nos anima: "buscar a união, portanto, sem nos deixarmos vencer pelo desânimo perante as diculdades que se possam apresentar ou acumular ao longo de tal caminho" (Redemptor Hominis, 6).
Por isso, estas palavras querem ser um gesto de comunhão eclesial [2]. Porque a comunhão também é escrita com criticidade construtiva e verdade (cf. Mt 18, 15-17). Não podemos estar de acordo com o tratamento inadequado e desqualificar que Dom Gonzalo recebeu por parte da Congregação para a Evangelização dos Povos. Não podemos acolher o procedimento pouco evangélico de transição da responsabilidade missionária dos Carmelitas Descalços para o novo Administrador Apostólico, nem a decisão de "organizar o Vicariato e implementar de forma diferente todo o trabalho pastoral".
Reconhecemos que toda obra humana pode ser melhorada para se aproximar mais e melhor do projeto do Pai e que somos chamados a viver, no interior da nossa Igreja, processos de correção fraterna para uma legítima conversão ao Reino, mas surpreende sobremaneira que se pretenda – expressamente – implementar outra "forma radicalmente diferente de organizar o Vicariato", desprezando assim toda uma história criativa de fidelidade ao magistério latino-americano.
A CER agradece a Igreja latino-americana pela opção pelos pobres, pela inculturação do Evangelho, pela busca da justiça e da paz, e pela opção conciliar de uma Igreja de "comunhão e participação" dos leigos/as e hierarquia. Por isso, nos causa mais dor ainda que as autoridades eclesiásticas correspondentes, com uma postura que contradiz essas opções, não tenham respeitado, valorizado e reconhecido o trabalho pastoral dos Carmelitas Descalços no nordeste equatoriano durante 83 anos, a entrega missionária e episcopal de Dom Gonzalo durante 40 anos [3] e a construção da Igreja local da Isamis inspirada e amadurecida ao abrigo dessas mesmas orientações.
Essa situação e agrava agora com a saída forçada dos seis missionários carmelitas, alguns dos quais tinham mais de 40 anos de entrega incondicional a essa parcela do Reino. Em um tempo como o nosso – de tanto pluralismo –, em que o diálogo com o diferente é essencial, isso questiona profundamente o fato de a nossa Igreja não conseguir convocar ao diálogo aberto e verdadeiro para chegar a soluções pacíficas e acolher até aquilo que considera alheio e contrário, contradizendo assim a descrição que Aparecida faz do que considera a essência constitutiva da Igreja-Povo de Deus: "O próprio Deus vai atrás da ovelha perdida, a humanidade doente e extraviada. Quando em suas parábolas Jesus fala do pastor que vai atrás da ovelha desgarrada, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro de seu filho pródigo e o abraça, não se trata só de meras palavras, mas da explicação de seu próprio ser e agir" (DA 136)
"A Igreja, como 'comunidade de amor' é chamada a refletir a glória do amor de Deus, que é comunhão, e assim atrair as pessoas e os povos para Cristo" (DA 159). A problemática que estamos vivendo transcendeu as esferas eclesiais, e causa tristeza a intervenção direta do governo equatoriano em um assunto que não pudemos solucionar em casa. Além disso, do que conhecemos desses últimos tempos, é a primeira vez que Roma intervém diretamente em nossa jurisdição para solicitar a saída de alguns religiosos missionários. Perguntamo-nos sobre a justificação desse proceder e queremos acreditar que responde a más informações e tergiversações retiradas de seu contexto que não fazem nada mais do que aprofundar a brecha da divisão e promover a violência, ao invés de "atrair as pessoas e os povos para Cristo". Atitudes pouco dialogantes, definitivamente, não farão que "os homens e mulheres de nosso tempo se sintam convocados e recorram à formosa aventura da fé" (DA 159).
Entendemos que a Igreja que amamos tem filhos e filhas muito diferentes. De fato, acreditamos que Deus quis a diferença, que ama a nossa alteridade original e, ao mesmo tempo, quer restabelecer a unidade humana essencial [4]. A comunhão passa pelos caminhos que vão desde a Torre de Babel à experiência de Pentecostes em Jerusalém, onde todos "falavam em línguas estranhas e diferentes, segundo o Espírito os movia a se expressar" (Atos 2,4), mas todos se entendiam.
Buscamos iniciativas para promover o diálogo da vida religiosa Sucumbíos entre os 15 Congregações ali presentes, incluindo os Arautos do Evangelho. Embora constatamos a complexidade da realidade e da polaridade das visões, não podemos pactar com atitudes não evangélicas, revanchistas ou difamatórias, e menos ainda vindo de irmãos da vida consagrada. Mas também somos conscientes de que esses enfrentamentos de posturas tão irreconciliáveis ocorreram ao promover essa transição precipitada, pouco prudente e não processual.
Como religiosos/as, não podemos menos do que expressar nossa preocupação e fazer com que seja ouvida a nossa voz filial de desacordo. Pedimos encarecidamente que nossos Pastores promovam posturas mais dialogantes e modos de proceder conciliadores e consensuais, assim como trabalhem pela restauração da comunhão e valorizem e reconheçam as "Sementes do Verbo", porque o trigo está presente em todo trabalho desinteressado pelo Reino (cf. Mt 13, 24-30), que nossos irmãos, em igreja, constroem em Sucumbíos e em outros lugares do Equador. Seguiremos, em meio a tudo isso, contribuindo com nossos esforços para tornar presente o Reino e apostando nessa comunidade de irmãos/ãs que nós constituímos, sonhando e lutando para que "todos encontrem em nossa Igreja um motivo para continuar esperando" [5], assim como buscando canais de diálogo, de discernimento evangélico e de comunhão eclesial (cf. DA 154, 155, 161, 163).
Com nossos sentimentos de profunda unidade no Senhor Jesus,
Junta Diretiva da CER
Notas:
[1] Oração Eucarística V/b.
[2] "A partir do seu ser, a vida consagrada é chamada a ser especialista em comunhão, no interior tanto da Igreja quanto da sociedade" (DA 218).
[3] "Todo o Povo de Deus deve agradecer aos Bispos eméritos que como pastores têm entregue sua vida a serviço do Reino de Deus, sendo discípulos e missionários. A eles acolhemos com carinho e aproveitamos sua vasta experiência apostólica que ainda pode produzir muitos frutos. Eles mantêm profundos vínculos com as dioceses que lhes foram confiadas" (DA190).
[4] Gn 11, 1-9.
[5] Oração Eucarística V/b.

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