A Congregação para a Doutrina da Fé do
Vaticano criticou duramente o premiado livro Just Love. A Framework for
Christian Sexual Ethics (New York: Continuum, 2006), sobre ética
sexual, de autoria da Ir.
Margaret Farley, das Irmãs da Misericórdia,
uma proeminente teóloga católica da Yale University, nos Estados Unidos.
"Dentre
os muitos erros e ambiguidades desse livro estão as suas posições sobre
a masturbação, os atos homossexuais, as uniões homossexuais, a
indissolubilidade do casamento e o problema do divórcio e do segundo
casamento", diz a “Notificação” de cinco páginas da Congregação. Nessas
áreas, afirma-se, a posição da autora "contradiz" ou "se opõe a" ou "não
se conforma com" o ensino da Igreja.
Divulgada no dia 4 de junho, mas datada de 30 de março, a
“Notificação” foi aprovada pelo Papa Bento XVI e assinada pelo cardeal
William J. Levada, dos EUA, prefeito da Congregação, e pelo arcebispo
Luis F. Ladaria, seu secretário.
Farley disse: "Embora minhas respostas a algumas questões sexuais
éticas particulares realmente se afastam de algumas respostas cristãs
tradicionais, eu tentei mostrar que elas, no entanto, refletem uma
profunda coerência com os objetivos e intuições centrais dessas
tradições teológicas e morais".
Embora a “Notificação” cite resumidamente as conclusões da religiosa
sobre cada um dos cinco tópicos específicos que são apontados, seguidas
de um breve resumo sobre como essas conclusões se afastam do ensino da
Igreja, Farley disse que a crítica da Congregação "não leva em
consideração também os meus argumentos para essas posições" ou os
"complexos contextos teóricos e práticos aos quais eles são uma
resposta".
Nesse sentido, a “Notificação” "deturpa – talvez inconscientemente –
os objetivos do meu trabalho e a sua natureza como uma proposta que pode
estar ao serviço, e não contra, a Igreja e seus fiéis", disse ela.
“Just Love: A Framework for Christian Sexual Ethics” [Apenas amor: Um
marco para a ética sexual cristã] foi publicado em 2006 pela Continuum,
uma editora internacional especializada em trabalhos acadêmicos. O
livro argumenta que a justiça é uma qualidade-chave nas relações sexuais
humanas, porque o amor autêntico é formado, guiado e protegido pela
justiça. Em seu central capítulo 6, "Marco para uma ética sexual: Apenas
amor", dentre os tópicos abordados, estão a personalidade, o livre
consentimento, a reciprocidade, a igualdade, o compromisso, a
fecundidade e a justiça social.
"Em última análise, nesse livro, eu propus um marco para a ética
sexual que usa critérios de justiça na avaliação de relacionamentos e
atividades sexuais verdadeiros e fiéis", disse Farley. "Ao fazer isso,
eu ofereço não apenas ideais para as relações sexuais humanas, mas
também alguns requisitos absolutos".
Em 2008, ela recebeu o prestigioso Prêmio Louisville Grawemeyer de Religião pelo livro.
Agora como professora emérita, Farley lecionou ética cristã durante
50 anos e começou sua carreira na Yale University em 1971. Ela foi a
primeira professora mulher de tempo integral da Yale Divinity School.
Ela e o renomado escritor espiritual Henri Nouwen compartilha a
distinção de terem sido os primeiros católicos da história no corpo
docente da faculdade.
"Eu não contesto o julgamento de que algumas das posições
[expressadas em “Just Love”] não estão de acordo com o atual ensino
oficial católico", disse ela. "No fim, eu só posso esclarecer que o
livro não foi concebido para ser uma expressão do atual ensino católico
oficial, nem estava especificamente voltado contra esse ensino. É de um
gênero completamente diferente".
Em um e-mail para o NCR, Lisa Sowle Cahill, uma conhecida teóloga
católica, autora e professora de ética na universidade jesuíta Boston
College, disse: "Os teólogos não veem nem apresentam o seu trabalho como
´ensino oficial da Igreja´, e poucos fiéis ficam confusos acerca desse
fato".
A Ir. Patricia McDermott, provincial das Irmãs da Misericórdia das
Américas, expressou um "profundo pesar por essa Notificação ter sido
emitida". Ela disse que Farley "assiduamente tenta apresentar a tradição
católica como formativa de sua própria rica experiência, reconhecendo
ao mesmo tempo o público ecumênico com o qual ela geralmente se
envolve".
O Rev. Paul Cadetz, ministro presbiteriano ordenado e professor de
teologia histórica no United Theological Seminary of the Twin Cities, de
New Brighton, Minnesota, disse ao NCR que, no ensino dos cursos de
graduação sobre religião, gênero e sexualidade, por duas vezes nos
últimos cinco anos, ele usou como texto obrigatório o livro “Just Love”.
"Eu acho que é o melhor livro sobre ética sexual" disponível hoje, disse ele. "Eu simplesmente acho que não há nada melhor".
O que a “Notificação” diz
A Congregação doutrinal disse, após um exame inicial do livro, em
março de 2010, ela enviou a Farley e à sua superiora religiosa uma
"avaliação preliminar (...) indicando os problemas doutrinais presentes
no texto".
A resposta de Farley em outubro daquele ano "não esclareceu esses
problemas de forma satisfatória", disse a Congregação, de modo que
realizou um exame completo do livro de acordo com os “Regulamentos para
Exames Doutrinais”.
Após um segundo intercâmbio entre a congregação, Farley e sua
superiora em 2011, a Congregação concluiu que a resposta dela aos
"graves problemas" presentes no livro ainda eram inadequados, e ela
decidiu prosseguir com a “Notificação”, que é uma forma padrão por meio
da qual a Congregação notifica as lideranças e membros da Igreja de que
encontrou sérios problemas doutrinais na obra de algum/a teólogo/a.
Sobre a abordagem geral de Farley, a “Notificação” diz que, ao
acordar questões morais, ela "ignora o ensino constante do magistério [a
autoridade de ensino oficial da Igreja] ou, onde ele é ocasionalmente
mencionado, ela o trata como mais uma opinião dentre outras. Tal atitude
não é de forma alguma justificável, mesmo dentro da perspectiva
ecumênica que ela deseja promover".
Farley também é acusada de possuir uma "compreensão deficiente da
natureza objetiva da lei moral natural", há muito tempo uma peça-chave
do ensino moral católico oficial. "Essa abordagem não é consistente com a
autêntica teologia católica", disse a Congregação.
Sobre as cinco questões específicas pelas quais a Congregação
criticou as posições de Farley, segue aqui uma versão resumida do que a
Congregação citou do seu livro e de suas respostas:
- Masturbação: "A Ir. Farley escreve: ´A masturbação (…) normalmente
não suscita quaisquer questões morais. (…) As normas da justiça da forma
como eu as apresentei pareceriam se aplicar à escolha de autoprazer
sexual apenas na medida em que essa atividade possa ajudar ou
prejudicar, apenas na medida em que apoia ou limita o bem-estar e a
liberdade de espírito. Isso continua sendo em grande parte uma questão
empírica, e não moral".
O firme e constante ensino da Igreja "e o sentido moral dos fiéis não
tiveram nenhuma dúvida e mantiveram firmemente que a masturbação é uma
ação intrínseca e gravemente desordenada", mesmo que também se devam
levar em conta fatores tais como "a imaturidade afetiva, a força de
hábito adquirido", que podem "diminuir ou mesmo atenuar a culpabilidade
moral", respondeu a Congregação.
- Atos homossexuais: "A Ir. Farley escreve: ´Meu ponto de vista (...)
é de que os relacionamentos e as atividades entre pessoas do mesmo sexo
podem ser justificados de acordo com a mesma ética sexual dos
relacionamentos heterossexuais. Portanto, pessoas orientadas ao mesmo
sexo, assim como suas atividades, podem e devem ser respeitadas quer
tenham ou quer não tenham uma escolha para serem de outra forma".
"Essa opinião não é aceitável", disse a Congregação. Embora as
pessoas com tendências homossexuais "devem ser acolhidas com respeito,
compaixão e sensibilidade", acrescenta-se, a tradição da Igreja, baseada
na Escritura, "sempre declarou que os atos homossexuais são
intrinsecamente desordenados. Eles são contrários à lei natural".
- Uniões homossexuais: observando que a Ir. Farley argumenta que as
leis antidiscriminação desempenham um papel importante para reverter o
ódio e a estigmatização de gays e lésbicas, a Congregação citou o
seguinte trecho do livro: "Atualmente, uma das questões mais urgentes
perante o público dos EUA é o casamento para parceiros do mesmo sexo –
ou seja, a concessão de reconhecimento social e de postura legal para
uniões entre lésbicas e gays comparáveis às uniões entre
heterossexuais".
"Essa posição é oposta ao ensino do magistério", disse a Congregação,
citando o Catecismo da Igreja Católica e declarações anteriores feitas
sobre o assunto, incluindo: "Os princípios de respeito e de não
discriminação não podem ser invocados para apoiar o reconhecimento legal
das pessoas homossexuais" – em parte porque isso significaria a
"aprovação do comportamento desviante, com a consequência de torná-lo um
modelo na atual sociedade".
- Indissolubilidade do casamento: "A Ir. Farley escreve: ´Minha
posição pessoal é de que um compromisso de casamento está sujeito a
cessão nas mesmas bases últimas de que qualquer compromisso extremamente
sério, quase incondicional e permanente pode cessar de vincular. (…)
Ele pode se manter absolutamente, em face de uma mudança radical e
inesperada? Minha resposta: às vezes não pode. Às vezes, a obrigação
deve ser liberada, e o compromisso pode ser justificadamente
modificado".
"Essa opinião está em contradição com o ensino católico sobre a
indissolubilidade do matrimônio", afirmou a Congregação. Sua resposta,
citando a lei da Igreja e o Concílio Vaticano II como suas fontes, disse
em parte que "o amor busca ser definitivo; não pode ser um acordo ´até
novo aviso´. (...) O Senhor Jesus insistiu na intenção original do
Criador, que quis que o matrimônio fosse indissolúvel. (…) Dentre os
batizados, um matrimônio ratificado e consumado não pode ser dissolvido
por qualquer poder humano nem por qualquer outra razão que a morte".
- Divórcio e novo casamento: "A Ir. Farley escreve: ´As vidas de duas
pessoas uma vez casadas entre si são sempre qualificadas pela
experiência desse matrimônio. (…) Mas [se ele acaba em divórcio] o que
resta não permite um segundo casamento? Minha opinião é de que não.
Qualquer obrigação permanente que um vínculo residual imponha, ela não
precisa incluir a proibição de um novo casamento – não mais do que o
fato de a união permanente entre os cônjuges depois que um deles tenha
morrido proíbe um segundo casamento por parte daquele que ainda vive".
Citando Cristo no Evangelho de Marcos – "O homem que se divorciar de
sua mulher e se casar com outra, cometerá adultério contra a primeira
mulher. E se a mulher se divorciar do seu marido e se casar com outro
homem, ela cometerá adultério" –, a Congregação respondeu que, no ensino
da Igreja, no caso do divórcio e do novo casamento civil, "uma nova
união não pode ser reconhecida como válida, se o primeiro casamento foi
válido", e aqueles que se encontram em tal situação não podem receber a
Comunhão se não se arrependerem, se confessarem no sacramento da
penitência e se comprometerem "a viver em completa continência".
A Congregação disse que, por causa de suas posições "em direta
contradição com o ensino católico no campo da moral sexual", o livro
“Just Love” não pode ser usado como expressão válida do ensino católico,
nem no aconselhamento e formação, ou no diálogo ecumênico e
inter-religioso".
A “Notificação” encerra com um apelo aos teólogos para que estudem e
ensinem a teologia moral "em plena concórdia com os princípios da
doutrina católica".
Outras reações
Harold Attridge, reitor da Yale Divinity School e católico, disse:
"Teólogos honestos e criativos muitas vezes se encontraram com uma
resposta crítica à reflexão teológica séria, e não é nenhuma surpresa
que o trabalho da professora Farley também tenha passado por isso".
Ele acrescentou: "A propósito, eu suspeito que aqueles que reagem
negativamente a ele agora apreciarão a importante contribuição que ele
faz àquele que deve ser o nosso esforço constante de examinar os
fundamentos da nossa vida moral".
Farley é ex-presidente da Catholic Theological Society of America
(CTSA) e da Christian Ethics Society. Ela recebeu 11 títulos “honoris
causa” e, em 1992, recebeu a maior honraria da CTSA pela sua realização
teológica, o Prêmio John Courtney Murray.
Teóloga do Boston College, Cahill disse em seu e-mail ao NCR que a
“Notificação” adotou uma estratégia de apenas relatar as conclusões de
Farley sobre cinco questões morais específicas e contrapô-las com as
conclusões do ensino da Igreja – sem "se engajar com nenhum dos
argumentos a favor ou contra" que a Igreja ensina.
Ela disse que essa abordagem cria a "infeliz impressão" de que:
- "Engajar-se com os argumentos da Ir. Margaret e as respostas às
inquirições anteriores [ao longo da investigação de dois anos] é
supérfluo e desnecessário, porque a condenação do seu livro foi
pré-determinada, e a investigação, uma mera formalidade;
- "Não há, de fato, nenhum argumento razoável para apoiar as posições afirmadas pela “Notificação”;
- "A própria Congregação para a Doutrina da Fé abandonou a fundamentação
da teologia moral na ´natureza objetiva da lei moral natural´ e está
contando exclusivamente com a autoridade das conclusões passadas".
Cadetz, teólogo presbiteriano de Minnesota – analisando o livro “Just
Love” a partir da perspectiva de um professor bastante afastado dos
debates católicos internos – disse em uma resenha do livro de 2007,
publicado na The Ecumenist, revista que promove a unidade dos cristãos,
que duas coisas o atraíram ao livro como um texto principal para o
ensino de cursos universitários sobre a ética sexual.
"Em primeiro lugar, ele oferecia aos meus estudante resumos claros e
legíveis de grande parte da literatura já coberta, mas que não é tão
estilisticamente lúcida como o texto de Farley", escreveu. "Em segundo
lugar, seu livro foi um maravilhoso manual para ensinar aos estudantes o
que acarreta a produção de um argumento ético e de como eles podem ir
construindo tal posição normativa sobre a ética secular para si mesmos".
Cahill comentou que "o momento dessa intervenção é incrível e
ironicamente ruim". "Os bispos dos EUA, e em sua instigação o Vaticano,
já estão atraindo uma enorme quantidade de comentários negativos na
imprensa acerca da sua perseguição às irmãs norte-americanas", disse
ela. "Eles apenas jogaram mais lenha no fogo".
A reportagem é de Jerry Filteau, publicada no sítio do jornal National Catholic Reporter, 04-06-2012, reproduzida pelo IHU.