29 de jul. de 2012

SÃO BENTO SEGUIDOR DO CRISTO por D. Abade André Martins, OSB

Sao BentoAo apresentar S. Bento, o papa S.Gregório usa uma expressão da Bíblia Vulgata (Bíblia Latina) que foi utilizada para apresentar três personagens bíblicos: João Batista, Samuel e Jó.
    O Santo Papa faz, primeiramente, alusão a João Batista, considerado pela Tradição Monástica como Pai dos Monges, presente no prólogo do IV Evangelho (Jo 1,1-6): “Houve um Homem enviado por Deus. Seu nome era João”. Com tal aspiração inteligente e artística, S.Gregório delineia o primeiro traço do rosto de S.Bento, e talvez o mais marcante e definido.

    Em seguida, alude igualmente às outras duas figuras bíblicas do Antigo Testamento: o jovem Samuel: “Havia um homem de Ramataim, um Sufita da Montanha de Efraim...”(1Sm 3,10) e o sofredor Jó: “Havia na terra de Hus, um Homem chamado Jó...” ( Jó 1,1), completando dessa forma a face espiritual, o caráter e a vocação desse homem que procurou verdadeiramente a Deus, num lugar da Igreja: a vida monástica.
    Iniciando a vida de S.Bento nesse estilo bíblico, S.Gregório nos dá a chave de interpretação de sua obra: a Sagrada Escritura.
    O pano de fundo dos II Diálogos é a Sagrada Escritura. Portanto, deve ser lido sempre e em constante referência à Palavra de Deus.
    Logo, para se compreender com maior profundidade a vida de S.Bento, há mister de conhecer a Sagrada Escritura. De fato, S.Gregório era um homem da Lectio Divina, e, por isso, capaz de apresentá-lo a partir dos grandes personagens bíblicos e a identificá-lo com os grandes amigos de Deus.
    João Batista, o Homem do deserto.
  
    São Bento, fiel à Tradição, será também um homem do deserto. Sua saída de Roma significa, exatamente, a direção para onde é o espaço vital do monge, ou seja, a solidão do deserto.
    Deixar Roma significava também romper com a vida secular e estar à margem da sociedade com suas consequências, assumindo as dificuldades que são próprias desse estilo de vida, não tendo mais acesso às facilidades de um convívio social. Era e será sempre renúncia à segurança e, até mesmo, ao conforto lícito e, por vezes, necessário.
    Abandonar Roma também significara para S.Bento abandonar seus projetos pessoais que o levariam ao sucesso, ao prestígio e à “realização pessoal e profissional” tão perseguida pelos homens de todos os tempos.
    Enfim, partir da Urbe para o jovem Bento era atualizar a história dos grandes amigos de Deus que partiam de onde se encontravam e buscavam um espaço de deserto, mesmo que não fisicamente, para escutar o que Deus tinha a falar-lhes ao coração, conforme a experiência do Profeta: “Pois, agora, eu é que vou seduzi-la, levando-a para o deserto e falando-lhe ao coração.” (Os 2,16)
    João Batista foi o homem do deserto com uma missão muito específica: a voz que clama, mas não em praça pública.Voz profética; voz que brotou do silêncio fecundo e de uma austeridade de vida; voz que foi atraindo homens e mulheres para o Cristo, a quem apontou como Cordeiro de Deus.
    Assim, S.Gregório apresenta nosso Pai S.Bento, qual novo João Batista, amigo do Esposo. Será aquele que atraindo discípulos, os conduzirá ao único e verdadeiro mestre: Jesus Cristo.
    O deserto que S. Bento experimentará ao longo de sua vida, vivendo primeiramente como anacoreta na gruta em Subiaco e depois como cenobita, será sempre o lugar privilegiado de sua conversão, (Sl. 77); o lugar de retorno às origens (1Rs19); o lugar da escuta, do primeiro amor, da voz de Deus que fala ao coração (Os 2,16); o lugar da teofania de Deus, da sarça ardente (Ex 3,1-6) e o lugar da opção fundamental e exclusiva pelo Reino de Deus, o lugar de vencer as tentações (Lc 4,1-13).
    No deserto, S.Bento irá, com a graça de Deus, distinguir a voz da Palavra. Cristo é a Palavra, ele tão somente a voz a serviço da Palavra, como o foi João Batista.
  
Samuel: O vigilante.
    O pequeno Samuel é figura do vigilante.”Fala, Senhor, que teu servo escuta.” (1Sm 1ss)
    Como o pequeno Samuel, S.Bento foi aquele que tinha o ouvido do coração inclinado à escuta da Palavra de Deus. Como homem da Lectio Divina, logo percebeu que o grande pecado de Israel havia sido a obstinada recusa em não inclinar o ouvido do coração à Palavra de Deus.
    Descobrira igualmente que não escutar tinha sido o pecado de nossos primeiros pais, prolongado pela experiência do povo eleito, até chegar à plenitude dos tempos, onde o Filho de Deus corrigirá a história da surdez humana.
    O jovem Samuel aprendera de um Heli a identificar e escutar o Senhor. S.Bento, qual novo Samuel, cedo reconhecerá que tanto ele quanto outros que buscam o Senhor, aonde quer que estejam na Igreja, precisam de um Heli que os ensine a distinguir a voz humana da voz de Deus. Assimilou e transmitiu o valor fundamental do discipulado presente em todo o texto da S.Regra, já frisando-o nas primeiras palavras do texto do prólogo: “Escuta, filho, os preceitos do mestre e inclina o ouvido do teu coração.”
    Como Samuel, S. Bento está no “Templo do Senhor”, o Mosteiro. Será para ele o seu lugar por excelência na Igreja, onde será chamado a escutar e a fazer a vontade de Deus. Será sempre lugar de louvor, de adoração, de discipulado, do despertar do sono do pecado e da indiferença para ter os olhos abertos à Luz deífica, lugar de sua oblação e de sua páscoa definitiva.
    Ninguém se faz monge sozinho; ninguém é absolutamente autodidata. Por uma especial graça de Deus, poderá ser o monge teodidata, mas na história do monaquismo tal realidade será sempre uma exceção à regra. Discipulado a um pai espiritual será a norma comum e insistentemente confirmada pelos antigos monges.
    Seremos sempre discípulos. Haverá sempre alguém que será canal da graça, mesmo com seus defeitos e falhas como foi Heli, sacerdote de Silo, que não soubera educar seus próprios filhos.
    D.André Louf, antigo abade de Mont des Cats, cita um apoftegma indiano que diz o seguinte: “Quando o discípulo está pronto, surge o mestre”.  
    Não é, portanto, preciso correr atrás de um Heli, ele surgirá quando se está no devido lugar, isto é, no lugar de discípulo.
    Há quem passe a vida inteira buscando incansavelmente um Heli e não o encontra; e nem o encontrará jamais, porque não encontrou, ou não quis aceitar seu lugar de discípulo ou de filho espiritual.
    Quando não se encontra o Heli desejado, busca-se a solução do autodidatismo. Assim como ninguém se faz cristão, mas feito por alguém que administre o sacramento do batismo, assim também ninguém se faz monge; o monge é feito por alguém que lhe transmite a Tradição.
    Ao iniciar sua vida monástica, o monge Romano será seu Mestre, o seu Heli; e, ao longo de sua vida, S.Bento permanecerá à escuta da voz do Senhor, que se fará ouvir pela Lectio Divina, pela Liturgia, pelos irmãos, por seus amigos, hóspedes e peregrinos, que vêem à Casa de Deus. Nesse aspecto, S.Bento será eternamente discípulo.
  
Jó: o homem da paciência.
    Jó é o homem da “passio”, isto é, da paciência e do sofrimento.
    É aquele que sabe esperar contra toda a esperança, que persevera em seus propósitos. É aquele que não desiste nem esmorece, quando abandonado por todos e iludindo-se abandonado por Deus.
    Persevera porque tem esperança. Persevera porque sabe o valor da virtude da paciência, que é distinta de passividade e fatalismo.
    Como Jó, S. Bento perseverou no sofrimento. Assumiu na fé as suas próprias chagas, sabendo que o Senhor não iria confundi-lo.
    Como Jó, todo homem tem chagas que ninguém consegue aliviá-las; vive situações que ninguém compreende, experimenta momentos que ninguém conseguirá ser companheiro e amigo. Resta tão somente a solidão existencial, própria de todo ser humano marcado pela queda do pecado original.
    Perseverar na fé durante a tribulação é a vocação por excelência de todo cristão e, portanto, do monge.(Rm 5,3-5)
    Não faltaram situações nas quais S. Bento experimentou a solidão de Jó, o amigo de Deus. Rodeado por todos e sozinho consigo mesmo, sobretudo, ao servir a comunidade, como abade.
    No Prólogo da Santa Regra, quando S. Bento exorta o candidato à vida monástica a “não fugir logo, tomado de pavor, do caminho da salvação, que nunca se abre senão por estreito caminho”  , temos Jó como estímulo e modelo de perseverança.
    Jó, figura de S.Bento, de todo monge e de todo homem, não foge da solidão existencial, diríamos hoje. Nada e ninguém preenchem tal vazio que o homem traz dentro de si, apenas por Deus plenificado.
    Certa vez, escutei de um homem casado, há muitos anos, e que julgo bem casado, que me confidenciava viver, sob alguns aspectos uma terrível solidão. Sua esposa não o compreendia. Confesso que me surpreendi. Há comunhão entre os cônjuges, mas não plena e, aos poucos, refletindo sobre a questão, entendi melhor o que se passava. Deus disse que homem e mulher seriam um só corpo, mas não uma só pessoa. As pessoas continuam as mesmas e envoltas em seu mistério. Há a fusão da carne, não das pessoas. Portanto, não há penetrabilidade total entre pessoas. Haverá sempre uma área da personalidade humana que só Deus tem acesso. Por isso, a solidão existente nas pessoas, mesmo casadas, é perfeitamente natural. Só Deus preenche esse vazio, que, uma vez, não assumido, machuca, deprime e desespera. Essa solidão é uma chaga que, se curada pelas chagas do Cristo, se torna, não só gloriosa, mas translúcida como cristais, deixando atravessar a luz do Ressuscitado que habita dentro dos iluminados pelo batismo.
    Enfim, as três figuras bíblicas, João Batista, Samuel e Jó se fundem na pessoa de S. Bento. Elas modelam a forma de seu rosto iluminado pela fé, própria de todos os amigos de Deus.
    As austeridades de João Batista somadas à vigilância de Samuel e à solidão de Jó fizeram de nosso Pai S.Bento um singular seguidor do Cristo.
fonte http://www.abadiadaressurreicao.org/site/

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