Escrito por Pe. Estêvão Raschietti
A conversão da Igreja se realiza na saída de si, do círculo da própria comunidade e dos confins da própria terra.
Focado
no tema "Discipulado missionário do Brasil para um mundo secularizado e
pluricultural, à luz do Vaticano II", o 3º Congresso Missionário
Nacional quer encarar um dos desafios mais candentes para a missão da
Igreja no século XXI, acolhendo o convite do 4º Congresso Americano
Missionário e 9º Congresso Missionário Latino-Americano (CAM 4 - Comla
9), a ser celebrado na Venezuela em novembro de 2013.
Voltam a
ressoar em nós as palavras da Evangelii Nuntiandi: "a ruptura entre o
Evangelho e a cultura é, sem dúvida, o drama da nossa época" (EN 20).
Por isso é preciso "chegar a atingir e como que a modificar pela força
do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam os centros de
interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos
de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de
Deus e com o desígnio da salvação" (EN 19).
Foram
realizados dois simpósios internacionais na Venezuela para aprofundar o
tema do CAM 4 - Comla 9, respectivamente em janeiro de 2011 e janeiro de
2012. No primeiro, a teóloga colombiana Olga Consuelo Vález Caro
abordou a questão da "leitura cristã da realidade secularizante",
evidenciando que a secularização pode ser entendida como "o processo
vivido pelas sociedades a partir do momento em que a religião e as suas
instituições perdem influência sobre elas, de modo que outras áreas do
conhecimento tomam seu lugar".
Contudo,
a secularização não é apenas a transição de uma sociedade tradicional
para uma sociedade moderna, onde a religião deixou de ser o cimento que
facilitava a coesão social. Trata-se muito mais de todo um modo de
sentir, pensar e agir, caracterizado pela autonomia da razão e da pessoa
humana, e pela pluralidade das propostas e dos projetos de vida. Com o
termo "laicidade" se quer descrever a condição de uma sociedade plural e
aberta.
Essa
emancipação do mundo traz certamente consigo um elemento de ruptura com o
regime de proteção religiosa, mas também traz um elemento de
continuidade no sentido que o próprio cristianismo resgatou, fundamentou
e proporcionou esta autonomia (cf. Gal 3, 28). Portanto, se de um lado
pode haver rejeição da religião, por outro, a sua aceitação acontece
agora no âmbito estritamente pessoal desligada da instituição. Ou seja: a
Igreja não pode mais determinar a maneira de ser e a relação com Deus
de cada pessoa. A pergunta que fazemos a partir da fé é como a presença
de Deus continua ainda atual neste novo contexto e se é possível ainda
anunciá-Lo ao ser humano contemporâneo.
Em
nenhum momento colocamos em dúvida que o Senhor ressuscitado esteja
presente e que o mandato missionário tenha perdido seu valor, mas nós
achamos que vivemos em tempos exigentes de responsabilidade e
criatividade, atitudes indispensáveis para responder a esse imenso
desafio da secularização e do pluralismo. Dependerá muito da habilidade
eclesial, aproveitar este kairós (tempo de graça) para ler e interpretar
os sinais dos tempos e conectar-se com as novas sensibilidades na busca
de Deus, da religião e da experiência da fé.
Não são
tempos de ansiedade e nostalgia, de fundamentalismos e retorno ao
passado, mas de agir responsavelmente em um contexto onde a fé cristã
não tem mais a hegemonia cultural. Como cristãos agimos muitas vezes de
forma preconceituosa, pretensiosa, ingênua e autorreferencial, sem saber
como administrar a secularização e os tempos nos quais estamos vivendo.
É hora, portanto, de enfrentar essa realidade caminhando com as
pessoas, reconhecendo e valorizando a alteridade, cuidando dos pobres,
"estando sempre prontos a dar razão de nossa esperança a todo aquele que
a pede" (1Pd 3, 15).
Ir ao encontro
Para
isso, não podemos esperar que as pessoas venham a nós, precisamos nós ir
ao encontro delas e anunciar-lhes a Boa Nova ali mesmo onde se
encontram. Esse princípio parece quase óbvio. No entanto, na prática, a
Igreja sempre teve a tentação de evangelizar a partir de sua própria
condição, permanecendo em seu lugar, a partir de sua própria cultura,
enviando e delegando seus missionários, mas sem se envolver num
movimento de saída e de inserção nas situações que desejavam
evangelizar.
Isso
corresponde a uma verdadeira conversão para as nossas comunidades
demasiadamente plantadas: "nós somos agora, na América Latina e no
Caribe, seus discípulos e discípulas, chamados a navegar mar adentro
para uma pesca abundante. Trata-se de sair de nossa consciência isolada e
de nos lançarmos, com ousadia e confiança (parrésia), à missão de toda a
Igreja" (DA 363). A conversão pastoral e a renovação missionária da
qual fala o Documento de Aparecida em suas páginas centrais trata
substancialmente de uma saída. Na saída de si, do círculo da própria
comunidade e dos confins da própria terra, se realiza para a Igreja essa
conversão.
A
experiência missionária é sempre marcada pela itinerança, pelo
despojamento, pela leveza e pela provisoriedade, por um contínuo entrar e
sair, por um êxodo pascal de morte e ressurreição. A missão jamais cria
raízes em algum lugar.
Paradoxalmente,
o tema da conversão antes de ser dirigido aos destinatários da missão, é
apontado por Aparecida como exigência fundamental para a própria Igreja
e de todos seus sujeitos: "para nos converter numa Igreja cheia de
ímpeto e audácia evangelizadora, temos que ser de novo evangelizados"
(DA 549). A conversão é sempre algo que começa dentro de nós e se
transforma em testemunho e anúncio para os outros.
Para a
missão hoje é preciso ter muita humildade, jamais arrogância de quem
pretende ensinar aos outros. Isso nos coloca numa posição de aprendizes,
de discípulos, de compaixão para com toda humanidade e de simetria com
qualquer ser humano. É necessário também valorizar o cotidiano. A
semente que morre para dar fruto não é percebida por ninguém: tudo
acontece num processo quase imperceptível, escondido, cadenciado no dia a
dia. De repente, olhando para o caminho, reparamos que passos foram
dados, escolhas foram amadurecendo, conquistas significativas foram
alcançadas.
Ao mesmo
tempo, é preciso ter responsabilidade e compromisso. Cumprir com
tarefas que apontam para um novo modelo de Igreja missionária não é
opcional. O que está em jogo é a aposta do Evangelho continuar sendo
significativo no mundo plural de hoje: essa missão é a razão última que
nos resta, para a qual entregamos nossas vidas e a vida de nossas
comunidades.
fonte:http://www.revistamissoes.org.br
*
Estêvão Raschietti é missionário xaveriano, italiano, há mais de 20
anos no Brasil, atualmente diretor do Centro Cultural Missionário - CCM
de Brasília. Publicado na revista Missões, N. 06 - jul-ago. 2012.
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