26 de out. de 2011

Camila Montecinos: ‘A luta pela Soberania Alimentar é a luta pelo futuro da humanidade’

Patricio Igor Melillanca

Jornalista. Radio del Mar
fonte: Adital
Tradução: ADITAL
Entrevista com Camila Montecinos, integrante de GRAIN e ANAMURI.
O Prêmio Nobel Alternativo em 2011 foi outorgado à organização Grain. Camila Montecinos, uma das integrantes desse coletivo afirma que "o prêmio foi usado para difundir que quando lutamos pela Soberania Alimentar, pela Reforma Agrária e pela Soberania dos Povos, especialmente dos povos indígenas e camponeses, no fundo, estamos lutando pela humanidade”. "Se chegarmos a perder o controle sobre a comida, que capacidade teremos de ser livres? A luta pela Soberania Alimentar e a persistência do mundo rural soberano é lutar por um futuro melhor para todos”.
Dias atrás, a Fundação Right Livelihood Award, que a cada ano entrega o Prêmio Nobel Alternativo com o objetivo de "honrar personalidades que propõem soluções concretas e exemplares aos desafios do mundo atual”, outorgou o prêmio à organização Grain, que luta para potencializar o princípio e as práticas de Soberania Alimentar (SA). Essa organização é parte de uma nova geração de agrupações que trabalham em rede em âmbito internacional, contando com 9 pessoas coordenadas, além de vários outros setores de camponeses, indígenas e coletivos urbanos. Uma dessas pessoas é a chilena Camila Montecinos, que também participa da Associação Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas (Anamuri).

Conversamos com ela sobre o significado da Soberania Alimentar; porém, juntamente com esse conceito e princípio, apareceram vários outros termos que começam a ser conhecidos e alertam as organizações cidadãs. "Monopólio (‘acaparamiento') de Terras”, "ruralização das cidades”, "privatização das sementes” são algumas das expressões que fazem parte dessa nova e interessante luta. Camila Montecinos nos diz que, definitivamente, a Soberania Alimentar é a luta pela humanidade, pelo futuro livre e autônomo dos povos.

- A Soberania Alimentar é um conceito lançado pela organização Vía Campesina, uma federação mundial de camponeses que existe há mais de dez anos, no momento em que a FAO definiu que o acesso à alimentação deve ser regulamentado pelo mercado. Nesse momento, as organizações camponesas declaram que o direito à alimentação não pode ser regulamentado pelo mercado e inauguram o conceito de SA, como o princípio através do qual os povos têm direitos soberanos para definir como produzem, como intercambiam e como consomem seus alimentos. A alimentação é um direito dos povos e eles devem definir tudo, da produção até a distribuição, o comércio e o consumo. Esse conceito tem causado impacto porque foi lançado em um momento em que as organizações estavam muito abatidas com o triunfo mais brutal do neoliberalismo. Esse conceito é cada vez mais utilizado por organizações e tem sido aprofundado e desenvolvido. Agora, a Vía Campesina e Grain definem que a SA já não é um conceito, mas um princípio.

- A FAO vinha falando em segurança alimentar, inocuidade e alimentos de qualidade para todos. Porém, vocês agregam o termo soberania. A FAO assumiu esse conceito, ou melhor, esse princípio?

- A FAO diz que deve haver alimentos inócuos para todos os indivíduos; nem sequer fala de povos. Em seguida, agrega que o acesso deve ser liderado pelo mercado. Porém, nós dizemos que o mercado é quem produz fome no mundo. Temos mais de um bilhão de pessoas famintas, não porque não existe comida, mas porque o mercado não lhes permite ter acesso à alimentação. No início, a FAO, no início, não deu importância à nossa proposta; nos últimos anos, viu-se obrigada a falar sobre SA; mas, não avançou em nada nesse caminho. Inclusive, vemos um retrocesso, pois a FAO não tem uma posição clara quanto ao monopólio (‘acaparamiento') de terras.

- ‘Acaparamiento' (Monopólio)? Outro conceito... O que significa?

- Após as últimas crises econômicas, os grandes capitais especulativos não tinham onde investir seu dinheiro e perceberam que investir na compra de terras para produzir comida era um grande negócio. Estão comprando e exigindo que lhes sejam entregues terras da mesma forma como são entregues as concessões mineiras. Eles pedem milhares de hectares. Isso está acontecendo em todas as partes e, na América Latina, os países mais atingidos são a Argentina e no Brasil. No Chile não acontece tanto porque em nosso país a propriedade da terra está tão concentrada que já não dá para concentrá-la ainda mais. Esses capitais especulativos se apoderam de terras que atualmente estão em mãos camponesas ou do Estado. Então, se analisamos as cifras (incluídas as do Banco Mundial), a quantidade de dinheiro que se gasta em comida em âmbito mundial é muito maior do que a gasta em petróleo. Há muita comida que não passa pelos circuitos comerciais e transnacionais. Hoje, calculamos que a metade da comida é produzida pelos camponeses, da qual uma parte significativa circula pelo comércio oficial e, outra, por fora. Dessa forma, hoje, há uma intenção consciente e sistemática de apoderar-se da alimentação, de controlar o comércio, a produção e os territórios. Porque, claro, se o campesinado e os povos indígenas têm terras, essa é uma prerrogativa para sua independência. Porém, a soberania dos povos significa também a soberania dos pescadores. Esse é o setor mais arrasado nos últimos anos. Podemos verificar isso no Chile, onde se acabou com a pesca artesanal, popular. Hoje, há grandes problemas de sobreexploração e também de ilegalidade. Isto é, cometes um delito ao realizar a pesca como há dez anos, quando ainda não havia privatização pesqueira.

- Há uma discussão seria sobre isso no Chile, sobre a tentativa do governo e de empresários de privatizar os peixes. Inclusive, influentes empresários, através do jornal La Tercera, propuseram eliminar a categoria de pescador artesanal. Qual sua opinião sobre isso?

- A conquista da linguagem é chave. E percebemos a importância de defender a linguagem. A agricultura dos povos indígenas não existe, não está em nenhum documento. Em Indap, antes, os camponeses eram beneficiários; hoje, são clientes. Antes, os trabalhadores eram trabalhadores; agora, são colaboradores. Na realidade, estão introduzindo uma nova linguagem que muda a mente das pessoas e ninguém percebe isso. Na ditadura, a saúde, a habitação, a educação passaram a ser um serviço e não um direito. Por isso, a Vía Campesina, os camponeses querem continuar sendo camponeses e dizem "nós defendemos o direito e o dever de produzir comida”. E o mesmo deveria valer para os pescadores artesanais. Deveriam reconhecer que têm um dever de reconhecer dignamente, proteger e defender seu nome e sua atividade.

- Continuemos com o conceito de soberania alimentar. O princípio de SA não é algo novo, mas é a fixação significativa do que os povos vêm realizando; é a prática cotidiana de seu sistema alimentar...

- Sem dúvida. É simplesmente reclamar o direito dos povos a decidir como se alimentam, como produzem, como fazem para que todos se alimentem. Porém, depois tivemos que elaborar mais para tentar responder a uma nova pergunta: "o que temos que fazer para que a SA seja realidade?”. Então, a proteção das sementes ganhou muita força, para que a semente continue circulando e possa ser intercambiada livremente. Em seguida, veio outra pergunta: "como podemos realizar a soberania alimentar se não temos terra?”... E isso motivou toda uma luta pela reforma agrária e pela restituição dos territórios aos povos originários. Daí, veio outra inquietação acerca de que não pode haver soberania alimentar se esta vai depender dos grandes supermercados e das multinacionais da comida. Houve a necessidade de restituirmos os mercados locais, os mercados de circuitos curtos que garante aos camponeses e aos povos indígenas comercializar diretamente. Assim, o conceito, que saiu da prática, foi sendo enriquecido e elaborado muito mais. Agora, se queremos falar de soberania alimentar, temos que ter soberania no campo. Isso significa autodeterminação dos povos. E a Vía Campesina já não fala somente de territórios indígenas autônomos, mas de territórios camponeses autônomos.

- E o que acontece com as zonas de alta concentração urbana? Ao falarmos de povos indígenas, de campesinado nos vêm à mente a América Latina, a África e a Ásia. Mas, o que acontece na Europa, por exemplo?

- Lá também há camponeses, claro. Temos que pensar que isso equivale aos povos indígenas. O que acontece é que foram desarraigados. Estão em uma situação dramática; mas, há um ressurgimento das organizações camponesas que também aderem de maneira muito decidida à SA, porque os processos de criminalização da atividade camponesa e do exercício soberano da agricultura dos povos originários estão muito avançados na Europa. Lá, não se pode plantar uma semente se não estiver nos registros. Isto é, se tiveres uma semente que está na tua família há 200, 300 anos, mas não estiver registrada, não podes semeá-la.

- E que fazem as comunidades diante dessa situação?

- Agora, há muita conscientização em relação a esses temas; há situações de desobediência civil e há muita briga para que esse tipo de lei seja derrogada. Por exemplo, na Colômbia, há um triunfo muito grande nas zonas onde não conseguiram impor a proibição de venda de leite cru (e que está proibida no Chile). É interessante ver que tanto pessoas do campo quanto da cidade se rebelaram contra essa proibição.

- Façamos uma previsão para América Latina. A Argentina era o graneiro do mundo; o Brasil é um extenso país, cheio de recursos naturais; e o Pacífico Sul-americano produz quase a metade do pescado do planeta. Como vês essa situação?

- Em geral, hoje, há uma ofensiva muito forte para acabar com o campesinado e com os povos indígenas como agricultores independentes, ou, simplesmente, como agricultores. De parte dos governos e das empresas existe uma ofensiva sistemática para despovoar o campo. Por exemplo, aqui no Chile, o documento do Ministério de Agricultura "Visión 2030” diz que a população no campo deve ser ao redor de 5%. No Brasil, também existe isso. As pessoas deixam o campo porque já não aguentam mais viver sem terra, sem água e vender seus produtos segundo as condições estipuladas pelos supermercados. Há também outra cifra que diz que 80% das pessoas do campo possuem apenas 2 hectares. Isso não é nada. E se permanecem na zona rural, não têm condições de ser agricultores independentes. Então, o agronegócio ocupa as terras: desapareceu o latifúndio e apareceu a agricultura industrial, que é muito maior do que o latifúndio. Atualmente, no Chile, há mais concentração da terra do que antes da Reforma Agrária, quando existia o latifúndio. 1% dos proprietários de terra tem 75% da propriedade.

- Que achas da estratégia de Chile Potência Alimentar?

- É uma piada trágica porque o Chile não produz alimentos. Aproximadamente 80% do produto agrícola são exportados. Porém, ao jogar as cifras na balança, somos grandes importadores de alimento da Argentina, do Uruguai, do Paraguai e, inclusive, do Brasil. Comemos lentilhas canadenses quando a lentilha era de origem 100% camponesa. O Chile produz doces, vinhos e salmão. E essa é uma estratégia superfrágil, porque, em tempos de crise, o primeiro que a gente deixa de consumir são esses produtos suntuários, delicatesen. Além disso, o salmão chileno, que competia com o da Noruega, tem uma fama horrível devido a problemas sanitários e de contaminação. Chile Potência Exportadora, sim; porém, Chile Potência Alimentar, não; porque não produz comida, somente doces, vinho e salmão. Também se diz que a agricultura é grande geradora de emprego e, portanto, o atual modelo não pode desaparecer porque geraria desemprego. No entanto,atualmente, a agricultura emprega a mesma quantidade de gente que empregava em 1985 e o produto agrícola é 5-6 vezes maior. Em 1985, 20% do emprego no Chile era agrícola; hoje, está ao redor de 11%

- No Chile há experiências de Soberania Alimentar interessantes de observar?

- O que existe são fortes resistências que são reserva para quando aconteçam espaços de soberania e possamos exercê-la plenamente. No Chile, destaca-se a defesa da semente camponesa, no qual o trabalho das mulheres tem sido chave, pois cuidam e conservam a semente e a mantém de uma geração a outra; e a intercambiam; fazem com que circule. Então, há uma prática muito propagada, descentralizada e popular de feiras de sementes, intercâmbio e aprendizagem. Em outros lugares, como nos Estados Unidos e no Canadá, alguns dizem que querem colocar em prática tudo o que se discute nas reuniões e nas estratégias de Soberania Alimentar; porém, não podem fazê-lo porque não têm sementes e são obrigados a comprá-las às companhias Dupont ou Monsanto. Aí está o tema da propriedade intelectual e da privatização das sementes. No Chile, em toda essa luta pela soberania alimentar está o rechaço ao Convênio Upov, que privatiza as sementes. Outra experiência interessante que tem sido fortalecida de maneira muito clara é a briga para começar a produzir de maneira mais agroecológica, que é a forma de recuperar os conhecimentos antigos, ancestrais, coletivos e voltar a aplicá-los à agricultura, para torná-la menos dependente de todos os insumos industriais.

- Que significa o Prêmio Nobel Alternativo para Grain?

- Receber o prêmio foi um reconhecimento à importância da agricultura camponesa, dos povos originários. Porém, também reconhecemos que esse trabalho não é exclusivamente nosso; é de uma grande quantidade de organizações, de uma grande rede. E o prêmio é para toda essa gente que potencia a Soberania Alimentar. O prêmio será usado para difundir mais o princípio da Soberania Alimentar para que uma quantidade maior de gente tome consciência sobre o que estamos falando e para que se entenda que quando lutamos pela Soberania Alimentar, pela Reforma Agrária e pela Soberania dos Povos, especialmente dos povos indígenas e camponeses, no fundo, estamos lutando pela humanidade. Se perdermos o controle sobre a comida, que capacidade teremos de ser livres? A luta pela Soberania Alimentar e a persistência do mundo rural e indígena soberano é lutar por um futuro melhor para todos.




























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