20 de nov. de 2012

Ascese Cristã

Carregamos o tesouro da vida nova em vasos de barro (I) 

Fonte:http://www.franciscanos.org.br/?p=27102

 ....Vamos nos deter num tema espinhoso: a ascese. Ascese  vem ascender, subir. Toda subida custa, é penosa. Quem hoje fala de ascese parece falar de alguma coisa completamente fora de moda. Nossa reflexão começa neste número de novembro e será concluída na edição de dezembro. Toda a ascese tem como finalidade dilatar o amor a Deus e aos irmãos, de tal sorte que tenhamos o domínio da barca da vida na travessia do tempo, vigiando cuidadosamente o tesouro que carregamos em vasos de barro.
1. Na verdade, quando se decide abordar as fontes da espiritualidade convém também refletir sobre os meios e modos de alimentar a vida nova de Cristo em nós que, no dizer do Apóstolo, “carregamos em vasos de barro”. Cada forma de vida tem sua modalidade de treinamento, de ascese, de terapia preventiva. Vivemos fazendo esforços para servir a pequenos deuses exigentes. Ascese e esforço para perder peso, para ter um corpo “sarado”, esforço de economizar nosso dinheiro para poder comprar um carro, uma casa, renúncias de lazer para ter sucesso num concurso público, privação do chocolate para não engordar, exercícios sem conta para vencer nos esportes. Sem esforço não se caminha. A impressão que se tem, em muitos ambientes cristãos, é que se duvida da necessidade e da importância da ascese. Esta soa como algo de um passado que já deixamos há algum tempo: cilícios, disciplina, jejum e abstinência, silêncio, regularidade na oração. “A mentalidade corrente parece banir os valores da ascese como se eles se opusessem à alegria do Evangelho e ao primado da Graça, portanto não condizentes com a vida espiritual. Dá-se a entender que basta o desejo e a espontaneidade dos indivíduos para atingir uma meta tão elevada como a de uma intensa vida espiritual. O caminho  espiritual, no entanto, precisa de cuidados, de atenções porque é uma trilha exigente e dura. Não esqueçamos: a finalidade é ser verdadeiro discípulo de Jesus, autêntico amigo do Esposo. Trata-se de um caminho fascinante, mas exigente.  A ascese cristã nada tem a ver com afirmação de si, não é uma forma de voluntarismo fechado e orgulhoso  que faria depender o progresso espiritual diretamente do esforço individual segundo uma visão pelagiana. Também  não é uma espécie de “quietismo” que considera inútil e incoerente o esforço espiritual do discípulo” (Angelo Bagnasco,  arcebispo de Gênova,  Camminare nelle vie dello Spirito, Carta Pastoral de 2009-2010).
2. Ser filho de Deus é uma graça, mas viver na qualidade de filhos é uma responsabilidade. O principal e primeiro protagonista da vida espiritual é o Espírito Santo. Ele é a fonte de todas as fontes. Mesmo nosso pecado não extingue a vida interior. Temos confiança que ele, o Espírito, é o artífice de nossa vida interior. Não nos esquecemos da palavra de Paulo:  “Tudo posso naquele que me conforta” (Fl 4, 13). Será preciso, no entanto, deixá-lo agir. Ora, a ascese tem como finalidade facilitar o caminho para ação do Espírito: renúncia ao supérfluo, vigilância dos sentidos, cuidar de que a consciência seja delicada.
3. A vida cristã, como qualquer empreendimento humano, necessita de método, atenção, exame, exercícios, hábitos…  Precisa de ascese. Necessário cuidar das disposições para a conversão, para a vida espiritual, para o seguimento de Cristo ou para a entrega ao trabalho em prol dos outros. Vemos pessoas que foram personalizando uma forma de oração e fazendo cotidianamente esse “exercício” da oração, preparando bem a celebração da Missa, adotando um estilo generoso de entrega aos outros, tendo disciplina no trabalho e no estudo, exercitando numa maneira serena de enfrentar as dificuldades. Com esses expedientes foram se fortalecendo e  fazendo viável a ação do Espírito.
4. Enzo Bianchi lembra que o cristianismo em nossos dias tem a tendência de desconsiderar a dimensão do “combate da fé”. Sabemos que o ensinamento dos primeiros cristãos que dava grande importância ao conjunto dos expedientes que permitiam a  fidelidade à vocação. “Não vigiamos suficientemente costumes que adotamos e que, por vezes, desfiguram nossa vocação humana e cristã. A luta espiritual é elemento essencial em vista da construção de uma pessoa madura e sólida” (In  Panorama Chrétien,   março de 2005, p. 44). Trata-se de uma luta interior contra o que existe em nós e nos leva a realizar o mal. Há ações concretas que precisam ser neutralizadas: vanglória, inveja, cólera, tristeza, avareza, desmandos sexuais. E. Bianchi afirma, dirigindo-se a um correspondente: “Esta luta deverá fazer de sorte que  passes do regime do consumo para o da comunhão com Deus e com os outros”.
5. Haverá de se descobrir novas formas de ascese. Os tempos são outros. O ser humano, no entanto, é feito de um desejo de atingir as estrelas e, ao mesmo tempo, sente-se atraído pelo que é de baixo. O tempo da vida é longo e o esposo custa a voltar. Pode ser que o Senhor, em seu retorno, surpreenda alguns  sem óleo nas lâmpadas! Não existe, no entanto, uma ascese  totalmente nova. Karl Rahner escrevia: “Há que se evitar de considerar o novo e o antigo como compartimentos estanques dentro da espiritualidade cristã: o novo só é autêntico quando conserva o antigo. O antigo só tem viço quando vivido de forma nova”.
6. Há que se cuidar de não se repetir os exageros e erros do passado. As práticas ascéticas do passado eram marcadas pelo dualismo entre corpo e espírito. O corpo era sempre visto como inimigo do espírito. Conhecida a expressão “salva a tua alma”, como se a espiritualidade não tivesse que levar em conta o fato de que Deus  assumiu um corpo. A cultura dominante era que o corpo se constituía como inimigo da alma, sede das faculdades inferiores que deveriam ser submetidas ao espírito. No fim de sua vida, Francisco de Assis pediu desculpas ao “irmão corpo” por tê-lo tantas vezes maltrado… Havia a convicção de que a salvação se faria sempre pela fuga do mundo.  Assim, os religiosos eram os fadados à santidade. Vivemos um tempo de  graça quando, depois do Concílio do Vaticano II, compreendemos essa visão unificada da vida, da humanidade, do caminho espiritual. Hoje, compreendemos melhor a bondade do mundo criado. No passado se exaltou uma certa espiritualidade ‘dolorista’, exaltando o sacrifício e a mortificação. Esta é uma página definitivamente virada.
7. De outro lado  vemos a perspectiva da espontaneidade que caracteriza a cultura difusa na atual sociedade. Hoje é sempre mais difundida a ideia de que tudo é válido. “O elogio da ‘espontaneidade’  e da ‘naturalidade’ numa cultura em que a espontaneidade está colonizada e a naturalidade segue padrões de comportamento socialmente induzidos, é ingênuo. Aquilo com o que se pretende nos fazer livres e nos abrir à graça, ao contrário, nos fecha em nós mesmos e ficamos à mercê dos ventos que sopram. O fruto da falta de ascese, do imediatismo, da indefinição e da anemia de uma vida cristã sem estrutura, continuidade, nem esqueleto  também inunda  as clínicas psicológicas e favorece  os negócios da indústria farmacêutica”  (Juan Antonio Guerrero Alves, SJ,   Desintoxicarse, situarse en la paz y caminar en el bien, in  Sal Terrae 93,  p. 790).
8. A ascese faz parte da vida humana. Algumas modalidades de ascese são encontradas  nas sabedorias do mundo pagão, nas filosofias antigas e nas religiões. Vejamos algumas expressões que descrevem ou apontam para a ascese: abnegação,  humildade, renúncia, pureza de coração, despojamento, mortificação, sacrifício, privação, continência, domínio de si, combate espiritual, retidão de intenção, luta contra os instintos. Muitas destas formas de ascese podem parecer absurdas quando desconectadas de seu sentido. Quando bem situadas, todas elas e muitas outras podem  facilitar o relacionamento do homem com Deus e com os outros. Somente a partir desta dupla relação é que as práticas ascéticas ganham sentido. Os exercícios ascéticos constituem um meio para o fim. Os Padres do deserto afirmavam que uma ascese privada de amor não aproxima de Deus. A ascese é treinamento para o amor.  Não é fim, mas meio.
9. Praticam a ascese aqueles que experimentaram alguma coisa acima das coisas do presente mundo. O empenho ascético brota de alguém ter atingido uma vida nova em Cristo, ter pregustado o sabor do Reino! Viver em união com Cristo supõe encontro com a cruz. A ascese cristã não perde a referência ao Reino, nem à cruz. Os escritores espirituais e os místicos nunca dão a entender que a ascese quer como que  arrancar a graça de Deus. Não fazem uma aritmética  entre o esforço pessoal e a graça. “Podemos distinguir os movimentos  internos na ascese cristã: o primeiro nos ensina que é necessário experimentar a libertação, a saída da escravidão do Egito. Esta libertação nos predispõe para o relacionamento com Deus e acolhida de seus dons. É o tempo da conversão. A travessia do deserto pode ser vista como o tempo das dificuldades e do estresse, ou também o tempo em que Deus fala ao coração e educa seu povo. Talvez esta seja a essência da ascese: dispor-se em estar diante de Deus em adoração e pura disponibilidade, para serem levados e guiados por ele. Permanece ainda um segundo movimento não menos delicado: tomar posse da terra prometida, sempre a  partir da fé, da esperança e do amor porque continuamos vivendo nesta história. Nesse momento procuramos tornar “real” o dom recebido nesta história. Por isso, Jesus Cristo não é só modelo, como também seu Espírito  guia esse processo, nos ensina a experimentar, educa a sensibilidade  e nos leva à sintonia com a encarnação”  (Juan Antonio Guerrero Alves,SJ  p. 792-793).
10. Em seus Escritos de Teologia, VII, ed. de Madri  1967, p. 30-31,  no seu famoso  artigo Espiritualidade antiga e atual  falava de uma nova espiritualidade emergente  e assinalava algumas de suas notas:  mais mística, com mais experiência  pessoal de Deus, mais presente no mundo, de maior compromisso com as realidades temporais. Para essa espiritualidade via surgir uma nova ascética que prescinde do heroico, do espetacular que não terá o caráter do adicional e do extraordinário  mas da liberdade responsável perante o dever e dos limites que cada um precisa impor  a si mesmo. Paul Evdokimov escreveu na mesma linha  dizendo que em nossos dias as práticas espetaculares de antigamente  são interiorizadas. O heroico se oculta sob o manto do cotidiano. Afirma ainda:  “A ascese cristã outra coisa não é de um método a serviço da vida e procurará estar em sintonia com as novas necessidades. A ascese consistiria mais num descanso que se impõe, a disciplina do sossego e do silêncio, períodos em que o homem se organiza para fazer uma pausa para a oração e contemplação, mesmo no âmago dos ruídos do mundo e, sobretudo, de ouvir a presença dos outros. O jejum, em vez da maceração que alguém com ele se inflige, seria a renúncia do supérfluo, o partilhar o bem com os pobres, busca de um equilíbrio saudável” (Citado  por Juan Antonio Guerrero Alves, p. 793).
11. Ascese significa exercitar, praticar e apontar para uma aplicação disciplinada, exercício repetido, esforço para adquirir uma habilidade e uma capacidade. Os exercícios ascéticos existem para que o projeto de vida cristão não venha a fracassar  por culpa de nossa inércia. Se alguém dissesse que em nossos dias não se faz necessária a ascese significa o mesmo que dizer que não há mais lugar para a educação. Ascese e educação consistem num trabalho que alguém faz sobre si mesmo ao longo da vida. Nos primeiros anos até o começo da juventude se faz com o auxílio  de adultos e na maturidade depende de uma opção pessoal, sob a orientação da própria consciência, da coerência com o próprio projeto de vida, muitas vezes sob a orientação de um diretor espiritual.
12. Terminamos as reflexões desta primeira parte do tema com palavras do Cardeal Angelo Bagnasco, arcebispo de Gênova, em sua Carta Pastoral sobre a vida espiritual: “O asceta cristão não é aquele que desafia a si mesmo para afirmar-se aos próprios olhos e aos olhos dos outros. Está em busca de um progresso espiritual, de sua unificação interior em Cristo. Tem confiança, sem ser ingênuo: sabe que em seu coração há o desejo do bem e as inclinações desordenadas. Tem consciência de seus instintos e da fragilidade de sua vontade. Faz a experiência do pecado. Está em busca da liberdade porque sabe que, em certo sentido, não nascemos livres, mas livres nos tornamos. Por este motivo se faz necessário um longo e penoso exercício”.
Carregamos o tesouro da vida nova  em vasos de barro…
Duas grandes referências:
● Paola Bignardi, Per una grammatica dell’ascesi, in La  Rivista del Clero Italiano  4/2012,  p. 269-283
● Juan Antonio Guerrero  Alves,  SJ,  Desintoxicar-se, situar-se en la paz y caminar en el bien.  Notas para una nueva ascética, in Sal Terrae 93 (2005), p.  789-803
Obs.: Resta-nos ainda a delicada tarefa de examinar formas concretas  de ascese para nossos tempos. Fá-lo-emos  em nosso próximo número.
Questões:
Por que nossos contemporâneos são avessos ao tema da ascese?
De maneira muito simples e clara tentar definir o que seria uma vida cristã vigilante?
O que mais chamou sua atenção neste texto de reflexão?

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