Putin anunciou o retorno da Crimeia à Grande Mãe Rússia em plena Praça
Vermelha, numa cerimónia de exaltação patriótica: "A Crimeia será sempre
uma parte inseparável da Rússia", afirmou. Ponto Final.
Difícil seria imaginar um cenário mais apropriado para aquilo que ficou
consumado naquela cerimônia: a anexação da Crimeia à Rússia, num ato
imperial de Moscovo contra a Ucrânia. Os interesses vitais da Federação
Russa – leia-se a base naval russa de Sebastopol e o acesso ao Mar Negro
– foram garantidos à bruta e com uma rapidez assinalável. Sem aquele
porto, o poder naval da Rússia ficaria comprometido, por isso o Kremlin
decidiu resolver a questão de uma vez por todas.
Referendo democrático?
No mesmo discurso, o presidente russo afirmou que o referendo de
domingo decorreu "em total acordo com os procedimentos democráticos e
com as normas legais internacionais", invocando o único facto que pode
disfarçar a anexação pura e dura. Mas vejamos: é democrático um
referendo que bateu todos os recordes de rapidez? Recordemos:
Ianukovitch foi destituído em 22 de fevereiro, o Parlamento da Crimeia
convocou o referendo cinco dias depois; inicialmente marcado para dia 25
de maio, foi sucessivamente antecipado para 30 de março e finalmente
para 16 de março. E ainda antes da sua realização, no dia 11 de março, o
mesmo Parlamento proclamou a independência da Crimeia. Que condições de
debate teria quem quisesse se opor a este rolo compressor?
Por outro lado, que condições de democracia pode ter um referendo que
se realizou sob ocupação militar da Rússia? Ah, sim: oficialmente, as
tropas russas que policiaram a capital no dia do referendo não eram tal –
eram “forças de autodefesa”. Também não eram tropas russas as bem
armadas forças que cercam ainda, com um arsenal bélico de tanques e
veículos de matrícula russa, todos os quartéis do exército ucraniano.
Isto é o que diz Moscovo. Alguém pode levar a sério esta afirmação?
O precedente Kosovo
O governo russo alega que o referendo e a proclamação da independência
da Crimeia são tão legítimos quanto a proclamação da independência do
Kosovo, em fevereiro de 2008, legitimada por Washington e muitos países
da União Europeia, entre os quais Portugal. Nisso tem razão. Depois de
dar cobertura à independência do Kosovo em relação à Sérvia, Washington
não tem autoridade para criticar agora a proclamação de independência da
Crimeia.
Mas Putin também não tem autoridade para invocar o precedente do
Kosovo, porque foi ele mesmo, na época, declarou que "o reconhecimento
da independência do Kosovo seria ilegal e imoral". Ora se a
independência do Kosovo era ilegal e imoral, a da Crimeia também o é --
que se saiba, Putin não mudou de posição. Por isso, invocar esse
precedente agora é mostra do mais rematado cinismo.
“Contra os nazis”
Há quem, na esquerda portuguesa e internacional, justifique a política
de Putin em relação à Crimeia como uma reação ao putsch fascista que
teria derrubado Ianukovich na Ucrânia. Vamos para já deixar de lado a
discussão sobre se o que ocorreu na Ucrânia foi um golpe ou um genuíno
movimento de massas – quem quiser, encontra abundante material no dossier dedicado à Ucrânia no Esquerda.net.
É certo, porém, que a extrema-direita, nomeadamente o partido Svoboda e
o Setor de Direita, têm forte presença no governo de Kiev e que este
deve ser denunciado por isso. Mas a melhor forma de “não compactuar com
fascistas” será promover a divisão da Ucrânia? Não será que essa atitude
reforça os ministros fascistas do novo governo ucraniano e a sua
propaganda para as eleições gerais marcadas para maio? Que alternativa
apresenta esta política aos antifascistas ucranianos? Que diz a estes a
esquerda europeia e portuguesa que apoia a argumentação putinista? Que
lutem pelo regresso de Ianukovich?
Não deixa de ser interessante ver como é funcional este súbito
argumento antifascista de Putin, um político de direita que mantém um
regime ditatorial e que de esquerda, como é óbvio, nada tem. A
argumentação antifascista do Kremlin aparece apenas para dar uma
cobertura ideológica à sua política imperial, até porque em matéria de
neonazis e de políticas de extrema-direita, Putin tem telhados de vidro.
Exemplos: Pavel Gubarev, o líder da mobilização pró-russa em Donetsk
que tomou a sede administrativa da região no dia 1 de março e se elegeu
“governador do povo” tem ligações com o Partido da Unidade Nacional Russa, uma organização declaradamente neonazi.
Uma “missão de observação internacional” que acompanhou o referendo da
Crimeia foi organizada pelo Observatório Euroasiático para a Democracia e
as Eleições, entidade financiada pela Rússia para organizar este tipo
de “missões” dirigida por dois militantes de extrema-direita, o polaco
Mateusz Piskorski e o belga Luc Michel. Este último é dirigente da
corrente dita terceirista, fundada por Jean-Francois Thiriart, antigo
colaboracionista durante a ocupação nazi.
Autodeterminação da Crimeia?
Há um argumento forte, porém, a favor da integração da Crimeia à
Rússia: o facto indesmentível de que a maioria da população da Crimeia é
a favor. Não por 95%, evidentemente, até porque quem era contra
simplesmente não foi votar. Mas a maioria a favor da integração era
previsível, dada a composição da população da Crimeia. Recordemos que em
1944 Estaline fez uma limpeza étnica na península, deportando 193 mil
tártaros para regiões longínquas, a maioria para o Uzbequistão.
Estima-se que 47% morreram no caminho. Ao mesmo tempo, Moscovo promovia a
russificação da península. Hoje, os tártaros foram autorizados a
regressar (nos anos 1980) mas são uma pequena minoria, sendo mais de 58%
os russos étnicos. O resultado, por isso, era previsível.
Quer isto dizer que a autodeterminação da Crimeia é um direito
inalienável, como é o da Escócia ou da Catalunha? É discutível. É
absurdo defender a autodeterminação de enclaves como as ilhas Malvinas,
Gibraltar, Ceuta e Mellila. Porque são territórios povoados pelo
colonizador. O caso da Crimeia é, pelo menos parcialmente, esse.
Dada a situação geográfica sensível, a Crimeia beneficiava já de
autonomia dentro da Ucrânia. Essa autonomia poderia e deveria ser
renegociada e ampliada, bem como o estatuto de Sebastopol, que já tinha
autonomia dentro da própria Crimeia. Mas isto é muito diferente de um
referendo organizado em três semanas.
Contra o governo com ministros fascistas e o expansionismo da NATO
Condenar a anexação da Crimeia significa apoiar a política da NATO e do
governo ucraniano nesta questão? Certamente que não, bem pelo
contrário, significa denunciá-las.
O governo de Kiev é corresponsável da anexação, por ter desde logo
fornecido o pretexto para a revolta da população de origem ou fala
russa, quando, como uma das suas primeiras medidas, aboliu o russo como
segunda língua oficial da Ucrânia. O governo de Kiev tem de ser
denunciado por ser o primeiro governo a incluir ministros neonazis sem
que nenhuma autoridade europeia mencione o facto. E o governo de Kiev
tem de ser combatido por se preparar para atrelar o país à austeridade
do FMI e da troika. Em breve, este governo vai entrar em choque com as
esperanças despertadas pela mobilização de Maidan.
Por outro lado, a NATO tem de ser denunciada pela sua óbvia ambição de
integrar a Ucrânia, o que significa levar as fronteiras da agressiva
instituição ocidental às fronteiras com a Rússia. Estados Unidos e
Europa fazem muito barulho contra a anexação da Crimeia, mas
aparentemente já a aceitaram. Mas em troca preparam-se para integrar a
Ucrânia na NATO, uma atitude que deve ser condenada firmemente. Trata-se
de uma inaceitável ameaça à paz. Qualquer negociação sobre a reversão
da anexação da Crimeia só é compreensível no quadro de uma Ucrânia
neutra.
Fonte: Esquerda.net
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