Imagem de um teste de armas nucleares norte-americanas nas ilhas Marshall.
Foto Governo EUA/Flickr
Fonte: http://www.esquerda.net/artigo/o-ponto-da-situa%C3%A7%C3%A3o-do-desarmamento-nuclear/31713
Se a psicose é uma perda de contato com a
realidade, o atual estado do desarmamento nuclear pode ser descrito como
psicótico. Artigo de Peter Weiss, no IPS.
Por um lado, a questão nuclear começa a despertar da letargia em que
esteve durante várias décadas. Por outro, o compromisso dos Estados
nucleares com um mundo sem armas atômicas é mais violado do que
cumprido.
Comecemos somando os prós e os contras do desarmamento nuclear.
Do lado dos prós temos o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama,
crucial para o problema, que se manifesta reiteradamente sobre o
assunto, embora tenha reduzido a marcha.
Ao discursar na Universidade de Pardue, no dia 16 de junho de 2008,
afirmou: “É hora de enviar ao mundo uma clara mensagem: os Estados
Unidos buscam um mundo sem armas nucleares. (…) Converteremos o objetivo
de eliminar todas as armas nucleares num ponto central da nossa
política nuclear”.
Não houve referência a quanto tempo isso poderia levar. Um ano depois,
no seu famoso discurso de Praga, a 6 de maio de 2009, Obama afirmou:
“Declaro abertamente e com convicção o compromisso dos Estados Unidos de
buscar a paz e a segurança de um mundo sem armas nucleares”.
Mas acrescentou que esse objetivo não será alcançado rapidamente,
talvez não enquanto ele, que na época tinha 48 anos, estiver vivo.
Quatro anos mais tarde, em 19 de junho de 2013, em Berlim, Obama
anunciou: “Paz com justiça significa buscar a segurança de um mundo sem
armas nucleares, sem importar o quanto este sonho possa estar longe”.
Para ser sincero, a trajetória para a abolição anunciada em Praga foi
implementada ou bloqueada sem responsabilidade do presidente. Foi
negociada com a Rússia uma redução substancial das armas nucleares e
diminuído o papel das armas nucleares na estratégia de segurança dos
Estados Unidos.
A ratificação do Tratado Exaustivo de Proibição de Testes e a
negociação de um Tratado de Materiais Físseis, ambos favorecidos pelo
governo de Obama, mantêm-se suspensos, um por parte do Senado dos
Estados Unidos e o outro por outro país.
Porém, redução não é o mesmo que eliminação, e os departamentos
norte-americanos de Defesa e Energia continuam a empreender políticas
que são claramente incompatíveis com o desarmamento nuclear, a saber:
A Estratégia do Emprego Nuclear dos Estados Unidos, emitida pelo
Departamento de Defesa, em 19 de junho de 2013, estabelece que as armas
nucleares só serão usadas em circunstâncias extremas, mas que é muito
cedo para limitar o seu uso estritamente à dissuasão;
A Avaliação de Tecnologia de Monitoramento e Verificação Nuclear,
divulgada em janeiro pelo Conselho de Ciências de Defesa, admite que,
pela primeira vez desde que começou a era atómica, os Estados Unidos têm
de estar preocupados não só pela proliferação horizontal, por exemplo,
aos países que não possuem armas nucleares, mas também pela proliferação
vertical, por exemplo, nas nações que as possuem.
Mas o relatório de cem páginas não faz nenhuma referência aos
requisitos de monitorização e verificação em um mundo livre de armas
nucleares.
No dia 6 de fevereiro, numa evidente violação do espírito, se não do
texto, do Tratado de Não Proliferação Nuclear, os Estados Unidos
anunciaram ter realizado com sucesso um teste de impacto (sem incluir
uma explosão) da bomba nuclear B-61.
Donald Cook, vice-administrador de Defesa nesse departamento, disse que
a engenharia da nova bomba já começou e que isso permitiria substituir
modelos mais antigos “para meados ou final dos anos 2020”.
Daí a política dos Estados Unidos sobre desarmamento nuclear ser, pelo
menos, heterogênea, e a das outras oito potências nucleares armadas não
ser muito melhor.
Agora passemos às boas notícias. Em 2013 as potências não nucleares
tomaram medidas mais animadoras para o desarmamento do que em anos
anteriores:
Em fevereiro, o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, país
membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), organizou um
Fórum sobre a Criação das Condições e da Construção de um Contexto para
um Mundo Livre de Armas Nucleares, convocado pela Iniciativa das
Potências Médias. Participaram 26 governos e várias organizações da
sociedade civil;
Em março, o Ministério das Relações Exteriores da Noruega, outro país
da Otan, convocou em Oslo uma Conferência sobre o Impacto Humanitário
das Armas Nucleares, da qual participaram 128 governos e várias
organizações da sociedade civil;
Em 21 de outubro, o embaixador norueguês junto à Organização das
Nações Unidas (ONU), Dell Higgie, entregou ao Primeiro Comitê do fórum
mundial a declaração adotada por 125 países, muitos dos quais
participaram da conferência em Oslo. Ali se estabeleceu que a única
maneira de garantir que as armas nunca voltem a ser usadas é
eliminando-as completamente;
O grupo especial de trabalho de composição aberta sobre o
Desarmamento Nuclear, estabelecido pela ONU, reuniu pela primeira vez em
maio, em Genebra, e em agosto produziu um relatório para a Assembleia
Geral propondo uma variedade de abordagens destinadas a alcançar o
desarmamento nuclear, incluindo um parágrafo sobre o papel do direito
internacional;
Também pela primeira vez, a Assembleia Geral da ONU manteve em 26 de
setembro uma reunião de alto nível sobre desarmamento nuclear, na qual
país após país, representados pelo seu presidente, ministro dos Negócios
Estrangeiros ou por outro alto funcionário, pediu um imediato e efetivo
avanço para um mundo sem armas atômicas;
Por fim, e o mais importante, durante a conferência de acompanhamento
de Oslo realizada na cidade mexicana de Nuevo Vallarta, nos dias 13 e
14 deste mês, Sebastian Kurz, ministro das Relações Exteriores da
Áustria, anunciou que convocaria uma conferência em Viena no final deste
ano, porque “os esforços internacionais de desarmamento nuclear exigem
uma mudança urgente de modelo”.
A conferência de Viena não será apenas um terceiro simulacro dos
horrores indescritíveis das armas nucleares. Abordará assuntos sérios,
talvez inclusive iniciando a redação do rascunho de uma convenção que
proíba o uso e a posse destas armas, como sugeriu o secretário-geral da
ONU, Ban Ki-moon.
Mas há um problema: os países que têm armas nucleares boicotaram tanto a
reunião de Oslo quanto a de Nuevo Vallarta. O que ocorrerá se também
boicotarem Viena? Essa é a questão. Também é o desafio que enfrenta a
crescente comunidade contrária às armas nucleares, tanto oficial como
não oficial. A vergonha pode ser uma ferramenta da diplomacia.
O Tratado de Não Proliferação, que para as potências nucleares é apenas
meras palavras, exige esforços de boa fé de parte de todos os Estados
para conseguir um mundo livre de armas nucleares. Este é um bom momento
para lembrar aos Estados nucleares, e particularmente aos cinco grandes,
essa obrigação tão importante.
* Peter Weiss é presidente emérito do Comité de Advogados sobre Política Nuclear. Artigo publicado no portal IPS em português.
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