Fonte: http://www.a12.com/formacao/detalhes/noe-deus-desistiu-da-humanidade
07 de Abril de 2014 às 08h46. Atualizada em 07 de Abril de 2014 às 09h15
Foto de: reprodução
O filme épico Noé é uma
tentativa moderna de releitura das páginas bíblicas dedicadas ao tema do
dilúvio. Assisti ao filme, mas devo confessar que não gostei, e não por
piedade religiosa, mas porque as conclusões antropológicas e teológicas
que se podem retirar dele são nefastas. Não posso negar, entretanto,
que os atores são nomes de peso, como Russel Crowe, Jennifer Connely e
Anthony Hopkins; além do diretor que tem filmes bons em sua ficha
técnica, como As Aventuras de Pi e Cisne Negro;
o cineasta novaiorquino, Darren Aronofsky. Mas o sucesso com aqueles
filmes não parece se repetir neste, porque a história faz lembrar muita
coisa, menos as poucas palavras bíblicas sobre o dilúvio. Hora eu me via
diante de um documentário da Discovery Chanel, ou numa cena perdida de
“O Senhor dos Anéis”… Mas a história da bíblia já é conhecida e seria
uma ingenuidade pensar que seriam gastos 125 milhões de dólares para
recontar aquela história, sem nenhum recurso à criatividade, sem nenhum
contorno diferente que fizesse surpreender o expectador, que já vai para
a sala sabendo o roteiro. Ingenuidade pior seria pensar que uma
produção americana iria descuidar da imagem, da performance, que
sobrepujam os roteiros de muitos filmes, embora hoje se assista a uma
tendência de recuperar a importância do roteiro, mesmo em meio à imagem
perfeita. Por fim, eu sabia que o filme era uma releitura, uma produção baseada em. Mas tal inovação incomodou… Queria falar desse incômodo…
1. O Filme Noé é incompatível ao Texto Bíblico.
A família de Noé será o último rastro humano. Pode haver um Deus que não queira a humanidade? Que não acredite nela?
Enquanto nas Escrituras, a focalização
interna – é como chamamos na teologia narrativa o recurso de descrever
as emoções ou a psique da personagem – é igual a zero, o filme faz
aparecer todas as emoções de Noé que de querer fazer a vontade de Deus,
torna-se um lunático, um verdadeiro fundamentalista. Um homem de fé
tornou-se um verdadeiro fanático, seguindo à risca a sua interpretação
de um sonho, segundo o qual ele deveria construir uma arca, para salvar
os animais e sua família, que deveria em seguida morrer para deixar no
novo paraíso somente os animais, os únicos não corrompidos pelo pecado.
Por isso, Noé não salva a menina pela qual, um de seus filhos, Cam, se
apaixona, depois de implorar por uma esposa ao pai; por isso Noé quer
matar as próprias netinhas, para que elas não se convertam na esperança
de repovoar a Terra pós-dilúvio. Deus não fala sequer uma vez com seu
servo, mas silencia-se sempre deixando-o às suas próprias escolhas e
conclusões. Pode parecer, aparentemente, que Deus quer deixar o homem à
sua própria responsabilidade, como alguns querem forçar. Antes fosse,
mas somos obrigados a ouvir Noé dizer a seu filho Cam que ele não deve
procurar o seu desejo, mas o desejo de Deus, repetindo uma imagem
tirânica da divindade, que traça um caminho que deve ser cumprido a
despeito de qualquer um.
Na bíblia a coisa é diferente: todos os
filhos de Noé entram na arca, já com suas noras. Deus fala com seu
servo, fazendo uma aliança com ele, porque nele encontrou honra e
retidão (Gn 6,9). Os animais também não são mais importantes que os
homens, ou os únicos incorruptíveis; basta ver a fala do Senhor a Noé em
Gn 6,13: “…tudo o que vive tem de terminar…a terra está cheia de
crimes”. Mesmo assim, Deus salvará dois de cada espécie e os casais
deverão entrar na arca “atrás” de Noé. Esse “atrás” indica uma
hierarquia (por isso também o homem deve cuidar das criaturas – para que
os ambientalistas não se ofendam).
O filme, é claro, usa-se de fontes
extrabíblicas, como para falar dos Guardiões, anjos caídos que, por
causa de sua luz e calor se fundem à rocha da terra, formando um espécie
de gigantes de pedra com uma luz entre rachaduras. A referência talvez
seja ao apócrifo Livro de Enoque, ou talvez seja uma referência aos
gigantes de Gn 6,4. Ou ainda pode ser uma mistura dessa figura com os
filhos de Deus de Gn 6,2, mas mexer com isso só deu uma áurea fantástica
ao filme, extrapolando o próprio nível fantástico da Escritura,
enrolando interpretações que são obscuras até para quem estuda bíblia. E
só para terminar; a degradação moral da humanidade, no filme, consistia
também em comer carne (antes do dilúvio) e não há, que eu saiba,
nenhuma referência disso na bíblia, já que a liberação para comer carne –
contanto que sem sangue – vem depois do dilúvio (Gn 9,4)…
2. O filme Noé é incompatível à teologia cristã católica sadia.
O filme não é de um teólogo, então ele
não tem obrigação de fazer teologia. E bastaria dizer da liberdade de
criação artística para eu calar minha boca e não dizer mais nada. No
entanto, o filme toca questões preocupantes.
Imagem de: reprodução
A arca é símbolo do “útero” divino capaz de gestar
o novo e parí-lo, mesmo de situações sem esperança.
o novo e parí-lo, mesmo de situações sem esperança.
O primeiro é certamente o da vontade de
Deus. O pior inimigo de Noé no filme, não é o seu anti-herói, um sujeito
barbudo que arrancaram sabe-se lá de que fonte para gerar emoção,
contrapondo-o ao patriarca. Noé vai descobrindo que sua maior luta é
contra a vontade de Deus, que é esmagadora. Sim, porque ele é julgado
pelos seus familiares que o provocam dizendo que uma arca daquelas
proporções poderia levar mais gente e também porque ele tem que ouvir a
própria consciência perguntando-o ‘quem é bom? Quem é mal, para que uns
se salvem e outros não?’ Mas, a vontade de Deus deve ser ouvida; a terra
será repovoada após o dilúvio pelos animais, mas a humanidade não tem
lugar lá. A família de Noé será o último rastro humano. Pode haver um
Deus que não queira a humanidade? Que não acredite nela? Ora, se a
história de Noé mostra alguma coisa, é justamente o contrário, mesmo
sobre o paradoxo do dilúvio. Será a relação com Deus sempre uma relação
concorrente, esmagadora; será ele o Absoluto que em contanto conosco,
como dizia Merleau Ponty, poderá apenas nos destruir? Depois, esse
negócio de saber a Vontade de Deus é muito perigoso; o discernimento é
demorado… Mas há certamente regras de interpretação de uma possível
vontade divina: a vida, em primeiro lugar, a paz, a realização crescente
e abrangente… O Noé do filme é apenas mais um fundamentalista.
As provocações pseudo-filosóficas
durante o filme, me lembraram Saramago (ele sim, filósofo). Primeiro, a
questão de Noé: quem será bom, quem será mau e sua conclusão de que eles
também são maus, enquanto sua mulher tergiversará dizendo que vê
bondade em seus filhos (aliás, desculpem a digressão, trata-se de uma
mulher sensata, que parece entender de ‘vontade divina’ mais do que Noé…
E parece ser mais bondosa do o que Deus do filme). Devemos lembrar que o
episódio do dilúvio, com seu gênero literário indica um sentido e não
conta um fato, não descreve um evento. É, pois, um recurso narrativo de
zerar a história, recomeçar uma geração (coisa expressa pelo número 40).
A causa do dilúvio é a maldade do coração humano, não uma maldade
ontológica, mas uma maldade praticada: a violência. O filme mostra
violência em todos (exceto na mulher e em Jafé): quando se trata de
defender os filhos (no caso de Sem); em Noé (fundamentalismo religioso),
em Cam (por vingança e ressentimento). O filme acaba mostrando que todo
homem é bom e mal (o que é certo), mas o relato bíblico não tem
preocupação com essas nuances psicológicas que são tão ocidentais; ou se
é reto ou não, na prática (ou sim, ou não!). Aliás, se as pessoas
fossem retas, justas e amorosas, não haveria sentido na violência para
defender a vida, muito menos na violência por vingança…
A causa do dilúvio é a maldade do coração humano, não uma maldade ontológica, mas uma maldade praticada: a violência.
Segundo, a provocação da mulher de Sem e
de outros a Noé, dizendo que a arca pode incluir mais pessoas, de que
eles podem lançar as cordas para que mais gente se salve, já que há
pessoas boas que estão morrendo injustamente… Esse traço do filme é
estranhíssimo. Como se trata de um relato em que importa o sentido e não
de uma descrição de um evento, insisto, o relato joga com exageros;
toda a terra se perverteu, Deus só encontrou honra em Noé. O relato é
simbólico e Noé é uma figura corporativa que representa a humanidade que
se mantém, quer se manter fiel a Deus. Por isso a arca é símbolo de um
microcosmo, onde se encontram pares de todas as criaturas e 4 homens,
bem como 4 mulheres. Quatro é o número do cosmo, na bíblia. A arca,
portanto, é um microcosmo que emerge em meio ao caótico; é o novo
surgindo do bojo do velho. A arca é símbolo do “útero” divino capaz de
gestar o novo e parí-lo, mesmo de situações sem esperança. Lembremo-nos
também da Aliança. O Deus silencioso do filme parece muito com o Deus de
nossas orações, calado enquanto esperamos uma resposta. Mas,
acreditamos que na inefabilidade, Deus é eloquente. Sem concorrer
conosco, sem esmagar-nos, Deus é o Absoluto que quer nos promover, nos
elevar, nos dignificar…
Por fim, homem e Deus são parceiros, não
inimigos. E onde há Deus, o Deus verdadeiro, há o seu desejo de ver o
homem feliz e integrado e de sempre salvá-lo. A fidelidade à sua Aliança
consiste, aliás, em resgatar o ser humano, sempre. Sua justiça não é
castigo ou punição, como mostra o filme, mas justificação do homem.
Então, a conclusão do filme, de que a Noé restou o direito de escolher
salvar os seus ou não, parece indicar que Deus abriu mão, Ele mesmo, de
fazer Sua escolha. Nós, entretanto, sabemos bem qual é a escolha divina:
amar-nos efetivamente. O resto é ficção que, mesmo baseada na bíblia,
não tem nada a ver com ela… Pois, um Deus sem humanidade, que desistiu
da humanidade, não é mais o Criador, não é mais Deus…
Autor: Diácono Eduardo César
Fonte: Arquidiocese de Uberlândia - Portal Elo da Fé
Nenhum comentário:
Postar um comentário