Catástrofes climáticas
espalham pelo mundo dramas e imagens espetaculares. E colocam uma
questão prosaica: quem pagará os estragos? “Derivados climáticos”,
“obrigações de catástrofe”, “bolsa de troca de riscos”… Em torno dos
novos desastres naturais surge um universo de oportunidades e
acumulação. Artigo de Razmig Keucheyan

Escola destruída por um tornado no estado do Indiana (EUA). Foto de Sgt. John Crosby
Em
novembro de 2013, o “supertufão” Haiyan atingiu o arquipélago das
Filipinas: mais de 6 mil mortos, 1,5 milhão de lares destruídos ou
danificados, 13 mil milhões de dólares de danos materiais. Três meses
depois, duas corretoras privadas de seguros, Munich Re e Willis Re,
acompanhadas por representantes da Secretaria Internacional de
Estratégias para a Redução de Riscos de Desastres das Nações Unidas
(UNISDR), apresentavam aos senadores filipinos um novo produto
financeiro desenvolvido para cobrir eventuais deficits do Estado em
termos de gestão de desastres climáticos: o Philippines Risk and
Insurance Scheme for Municipalities (Prism), um tipo de título com altos
rendimentos que os municípios ofereceriam, em caso de catástrofe, a
investidores privados [1]. Estes últimos beneficiariam de taxas de juros
vantajosas subsidiadas pelo Estado, mas, caso houvesse um sinistro de
uma força ou desastre predefinidos, perderiam os seus investimentos.
“Derivados climáticos” (weather derivatives), “obrigações de catástrofe” (catastrophe bonds)
e outros produtos de seguro climático fazem muito sucesso. Além dos
países asiáticos, o México, a Turquia, o Chile e até mesmo o estado
norte-americano do Alabama, duramente afetado pelo furacão Katrina em
2005, recorreram a eles de uma forma ou de outra. Para os promotores
desses instrumentos, trata-se de confiar ao mercado financeiro os
seguros de riscos naturais, inclusive os prémios; avaliações de ameaças e
ressarcimento das vítimas. Mas por que o mercado financeiro cobre danos
causados pela natureza justamente agora, que ela mostra sinais cada vez
mais claros de desgaste?
Durante muitos séculos, a Terra forneceu ao sistema económico
matérias-primas e recursos naturais a preços baixos. O ecossistema
também conseguia absorver os resíduos da produção industrial. Mas essas
duas funções já não se realizam tão facilmente. Não só o preço das
matérias-primas e da gestão dos resíduos aumenta, como a multiplicação e
o agravamento dos desastres naturais fazem subir o custo global dos
seguros. Isso exerce uma pressão para diminuir as taxas de lucro dos
atores industriais. Desse modo, a crise ecológica não é apenas o
reflexo, mas também a provável causadora de uma crise do capitalismo.
Nesse contexto, a “financeirização” parece oferecer uma escapatória:
as companhias de seguros e de resseguros colocam em jogo novas formas de
dissipar o risco, das quais a principal é a titularização de riscos
climáticos − uma transposição para a esfera meteorológica dos mecanismos
testados com o sucesso que conhecemos no sistema imobiliário americano…
Entre os produtos mais fascinantes desse novo arsenal financeiro está o cat bond, diminutivo de catastrophe bond,
ou seja “obrigação de catástrofe”. Uma obrigação é um título de crédito
ou uma fração de dívida liquidável num mercado, e sujeita a uma
cotação. A particularidade dos cat bonds é que eles não surgem de
uma dívida contraída por um Estado para renovar suas infraestruturas ou
por uma empresa para financiar sua inovação, e sim da natureza e dos
seus perigos. Eles abrangem uma eventualidade que pode ocorrer, mas sem
certeza; sabe-se apenas que ocasionará desgastes materiais e humanos
importantes.
A partir daí, trata-se de dispersar os riscos naturais no espaço e no
tempo, tornando-os financeiramente insensíveis. Conforme os mercados
desdobram-se em escala mundial, esses riscos ficam em evidência máxima.
Esse prodígio da engenharia financeira nasceu em 1994, logo após uma
série de desastres com custos fora do normal (o furacão Andrews na
Flórida em 1992, o terremoto de Northridge na Califórnia em 1994)
obrigar a indústria de seguros a encontrar novos recursos. Desde então,
foram emitidos cerca de duzentos cat bonds, 27 apenas em 2007, totalizando 14 mil milhões de dólares.
Furacão nas Caraíbas vs. tsunami na Ásia
Como todo o título financeiro, as obrigações climáticas têm de se
submeter ao crivo das agências de classificação de risco – Standard
& Poor’s, Fitch e Moody’s –, que geralmente lhes dão a medíocre nota
BB, o que significa que possuem risco. O valor de um cat bond
flutua no mercado em função da maior ou menor probabilidade do que a
ameaça venha a acontecer e em função da oferta e procura do título em
questão. Acontece que esses títulos continuam a circular quando uma
catástrofe se aproxima e mesmo durante seu desenrolar; por exemplo,
durante uma onda de calor na Europa ou de um furacão na Flórida. É o que
os traders especialistas chamam de live cat bond trading – comércio ao vivo de títulos [2], o que faz sentido em razão da sua composição característica.
Uma bolsa de valores de títulos chamada Catastrophe Risk Exchange (Catex),
localizada em Nova Jersey, surgiu em 1995. Um investidor excessivamente
exposto aos tremores de terra californianos poderá diversificar o seu
portfólio trocando os seus cat bonds por outros de furacões no
Caribe ou de tsunamis no Oceano Índico. A Catex também serve para
fornecer base de dados a seus clientes, permitindo a avaliação de
riscos.
Protagonistas do dispositivo, as agências de modelização rendem-se ao catastrophe modeling,
ou seja, à modelização das catástrofes. O seu objetivo é calcular a
natureza e reduzir quanto for possível a incerteza. Existe um pequeno
número de agências de modelização de negócios no mundo, a maioria delas
norte-americana: Applied Insurance Research (AIR), Eqecat e Risk
Management Solutions (RMS). Em função de variáveis como velocidade dos
ventos, tamanho dos ciclones, temperaturas e características físicas da
zona em questão (material utilizado na construção, tipo de terreno,
população), avaliam o custo de uma catástrofe, bem como as indemnizações
a serem pagas pelas seguradoras. E, consequentemente, determinam o
preço do cat bond.
A maioria das obrigações desse tipo emitidas até hoje partiu de
seguradoras e resseguradoras. Mas, desde meados dos anos 2000, os
próprios países colocam no mercado cat bonds “soberanos” – da
mesma forma que se fala em dívida soberana. Essa tendência, lançada
pelos teóricos contemporâneos de seguros advindos da Wharton School da
Universidade da Pensilvânia, uma das escolas de comércio mais
prestigiadas do mundo, é fortemente encorajada pelo Banco Mundial e pela
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Este deslocamento ilustra a ligação estreita que se estabelece entre a
crise de orçamento dos países (endividamento e queda das suas receitas)
e a crise ambiental. Por causa das dificuldades que atravessam, os
países mostram-se cada vez menos capazes de assumir o custo dos seguros
contra desastres climáticos pelos meios convencionais, ou seja,
principalmente por impostos. E essa incapacidade fica a cada dia mais
evidenciada conforme aumentam o número e o poder dos cataclismos
causados pelas mudanças climáticas. Para governos em apuros, a
financeirização dos seguros de riscos climáticos representa um sopro de
oxigênio: a titularização como substituto ao imposto e à solidariedade
nacional. Esse é um ponto de fusão entre a crise ecológica e a
financeira, como mostra o exemplo mexicano.
Furacões no Golfo do México, terremotos, deslocamentos de terra ou
erupções do Popocateptl: o México parece cercado por ameaças “naturais”.
Segurador em última instância em caso de catástrofes, o Estado
indemniza as vítimas com o orçamento federal, ou seja, graças aos
impostos, segundo o princípio da solidariedade nacional consubstancial
ao Estado-nação moderno. Em 1996, o governo lançou o Fondo de Desastres Naturales
(Fonden), destinado na época a fornecer ajuda de urgência aos acidentes
e permitir a reconstrução das infraestruturas. Esse dispositivo
funcionou até uma série de catástrofes com custo exorbitante se abater
sobre o país. Em 2005, o governo federal gastou 800 milhões de dólares
para cobrir esses danos, quando só tinha… 50 milhões para gastar. (3)
Critérios muito rigorosos
A ideia de titularizar o seguro de riscos de tremores de terra se
concretizou no ano seguinte, com o incentivo do Banco Mundial. Em 2009, o
país decidiu incluir no dispositivo os furacões, o que deu origem a um
programa “multicat”, que cobria uma multiplicidade de riscos. Estavam
presentes na mesa de negociações somente pessoas de alto gabarito: o
ministro das Finanças do México, representantes da Goldman Sachs e da
resseguradora Swiss Re Capital Markets, encarregados de vender o
programa aos investidores. A Munich Re também estava presente, bem como
dois grandes escritórios de advocacia norte-americanos, Cadwalader,
Wickersham & Taft e White & Case. A Applied Insurance Research
(AIR), agência de modelização encarregada de estabelecer os parâmetros
para o lançamento da obrigação – o nível de gravidade no qual os
investidores perderiam seu dinheiro –, elaborou dois modelos: um para os
terremotos e outro para os furacões. Depois de estar registado nas
Ilhas Caimão pela Goldman Sachs e pela Swiss Re, o cat bond foi vendido
aos investidores em turnês de promoção organizadas pelos bancos.
Cada vez que uma catástrofe abate o México, a agência AIR determina
se o acontecimento corresponde aos parâmetros estabelecidos pelos
contratantes. Se for o caso, os investidores devem colocar o dinheiro à
disposição do Estado do México. Caso contrário, não gastam nada e
continuam a lucrar com o seguro.
Em abril de 2010, um terremoto arrasou o estado da Baja Califórnia,
mas o seu epicentro encontrava-se a norte da zona delimitada pelo cat
bond. Resultado: o dinheiro da obrigação não foi libertado, e o México
continuou a pagar juros. Da mesma forma, quando um furacão atingiu o
estado de Tamaulipas dois meses depois, sua força foi inferior ao nível
predeterminado, e o México não viu a cor dos dólares. Os critérios são
tão rigorosos que apenas três dos duzentos cat bonds emitidos em quinze
anos foram acionados (The Economist, 5 out. 2013).
No Sudeste Asiático, região particularmente exposta, a introdução de
cat bonds soberanos opera segundo modalidades particulares [4]. Na
Indonésia, maior país muçulmano do mundo, os princípios de seguros
islâmicos, o takaful, aplicam-se. Sem poder ignorar que o setor
apresenta após uma década um crescimento anual de 25% (contra os 10%
obtidos pelo mercado tradicional de seguros), a resseguradora Swiss Re
esforça-se para reforçar sua sharia credibility, segundo a sua
própria expressão [5]. Os países em desenvolvimento são com frequência
os mais duramente afetados por catástrofes climáticas, tanto por razões
geográficas como por não possuírem os mesmos meios para enfrentá-las que
os países ocidentais. O aumento do nível do mar atinge tanto a Holanda
como Bangladesh, mas é preferível enfrentar as ondas em Amsterdão a
encará-las em Munshiganj. [6]
As obrigações de catástrofe – ou, em outro género, os créditos de
carbono – não são os únicos produtos financeiros ligados a processos
naturais. Os derivados climáticos, por exemplo, propõem aos investidores
apostas em relação ao tempo que faz, ou seja, sobre as variações da
meteorologia que não representem uma interrupção no curso normal da vida
social. Desde eventos desportivos a colheitas, passando pelo granizo,
concertos de rock e variações no preço do gás, bem como diversos outros
aspetos das sociedades modernas são influenciados pelo tempo. Estima-se
que um quarto da riqueza anual produzida pelos países desenvolvidos
esteja suscetível a sofrer impactos em relação ao tempo.7 O princípio do
derivado climático é quase infantil: uma quantia financeira é libertada
para o lucro de quem o adquiriu caso as temperaturas – ou algum outro
parâmetro meteorológico – superem, ou não atinjam, um nível
predeterminado; por exemplo, se o frio – e, portanto, os gastos com
energia – excede certo nível ou se a chuva restringe a frequência de um
parque de diversões durante o verão.
No ramo agrícola, alguns derivados têm como subjacente – o ativo real
sobre o qual um instrumento financeiro versa – o tempo de germinação
das plantas. Um índice como o “grau por dia de crescimento” (growing
degree days) mede a diferença entre a temperatura média que uma
plantação necessita para amadurecer e a temperatura real, ativando o
pagamento de determinada quantia caso seja ultrapassado um nível
estabelecido. Em caso de um swap (“troca”), duas empresas afetadas de
maneira oposta pelas variações climáticas podem decidir se segurarem
mutuamente. Se uma empresa de energia perde dinheiro em caso de um
inverno pouco rigoroso e o mesmo ocorre com uma empresa de eventos
desportivos em caso de inverno muito rigoroso, cobrem-se com um montante
predeterminado conforme o termómetro sobe ou desce.8
Os ancestrais dos derivados climáticos apareceram na agricultura no
século XIX, principalmente nos Estados Unidos, no Chicago Board of
Trade. Tratavam de matérias-primas como algodão e trigo.9 No momento da
libertação e da aglutinação dos mercados financeiros, nos anos 1970, e
da proliferação dos derivados, os subjacentes potenciais
multiplicaram-se. Pioneiras nesse ramo, as multinacionais de energia,
entre elas a Enron, encontraram nos derivados um meio para “suavizar” os
seus riscos de perdas.10 Desse modo, após o inverno de 1998-1999,
particularmente brando nos Estados Unidos por causa do fenómeno La Niña,
algumas termoelétricas decidiram utilizar os derivados para se “cobrir”
– para essas empresas, as flutuações de alguns graus implicavam
variações financeiras colossais. A partir de 1999, os derivados
climáticos passaram a ser trocados no Chicago Mercantil Exchange,
historicamente especializado em produtos agrícolas. O surgimento desses
produtos financeiros está atrelado ao movimento de privatização dos
serviços meteorológicos, principalmente nos países anglo-saxões: são
eles que, em última instância, determinam o nível que precisa ser
atingido para que um derivado seja acionado.
Num artigo intitulado “Pourquoi l’environnement a besoin de la haute
finance” [Por que o meio ambiente precisa da alta finança], três
teóricos de seguros sugerem atualmente a implantação do species swap, um
tipo de derivado que trata do desaparecimento de espécies.11 A
interpenetração das finanças e da natureza assume aí uma de suas formas
mais radicais: tornar a preservação das espécies rentável para as
empresas, a fim de incentivá-las a tomar conta da biodiversidade. Na
verdade, essa missão custosa cabe hoje ao Estado, cujos cofres estão
cada dia mais vazios. Ainda nesse tema, o aumento da crise fiscal
justifica a financeirização da natureza.
Imaginemos que o estado da Flórida assine um contrato de species swap
com uma empresa, tendo como subjacente uma variedade de tartaruga
ameaçada que vive nos arredores da contratante. Se o número de espécies
aumentar por causa da atenção dedicada pela empresa, o estado paga juros
a esta; porém, se as tartarugas rarearem ou se aproximarem da extinção,
é a empresa que tem de pagar ao estado, para que este possa iniciar uma
operação de salvação.
As “hipotecas ambientais” (environmental mortgages) – tipo de
subprime cujo subjacente não é um bem imobiliário, e sim uma parte do
meio ambiente –, os títulos garantidos por florestas (forest backed
securities) e ainda os mecanismos de compensação de zonas húmidas
(wetlands), legalizados nos Estados Unidos pela administração do
presidente George H. Bush durante os anos 1990, constituem outros
exemplos de produtos financeiros desse tipo.
O capitalismo, segundo o teórico do ecossocialismo James O’Connor,
implica “condições de produção”.12 À medida que se desenvolve,
enfraquece e até destrói as suas condições de produção. Se o petróleo
barato permitiu durante mais de um século o funcionamento daquilo que
Timothy Mitchell chama de “democracia do carbono”,13 a sua escassez
aumenta consideravelmente os custos da indústria. O capital precisa
destas condições de produção, mas não consegue evitar que, por sua ação,
as fontes se esgotem. É o que O’Connor chama de “segunda contradição”
do sistema: aquela entre o capital e a natureza, ao passo que a primeira
opõe o capital e o trabalho.
Essas duas contradições entrelaçam-se: o trabalho humano gera valor
transformando a natureza. A primeira contradição conduz a uma baixa
tendenciosa da taxa de lucro, ou seja, ao surgimento de crises profundas
do sistema. A segunda induz a um encarecimento crescente da manutenção
das condições de produção, que pesa igualmente na queda da taxa de
lucro, pois volumes crescentes de capitais empregados nessa manutenção –
por exemplo, para pesquisas de reservas de petróleo, cujo acesso está
cada vez mais difícil – não são transformados em lucro.
Nessa configuração, o Estado moderno tem um papel de interface entre o
capital e a natureza: ele regula o uso das condições de produção para
que elas possam ser exploradas. O objetivo do ecossocialismo consiste em
desfazer o tríptico formado pelo capitalismo, a natureza e o Estado.
Trata-se de impedir este último de trabalhar a favor dos interesses do
capital e reorientar a sua ação a favor do bem-estar da população e da
preservação do equilíbrio natural. A conferência Paris Climat 2015 (COP
21), na qual o governo do presidente François Hollande parece estar
depositando grandes esperanças, oferecerá ao movimento global pela
justiça climática uma chance de expressar essa reivindicação.
Listas negras
O seguro moderno é indissociável do resseguro – o “seguro das
seguradoras” –, que o segue como a sua sombra. Permite às seguradoras se
prevenirem contra riscos que julgam importantes, por isso contratam um
seguro para seguros. O mecanismo é o mesmo que no grau inferior: a
seguradora paga um montante à resseguradora, que lhe pagará
indemnizações caso ocorra algum acidente. Esse montante normalmente é
reinvestido pela resseguradora em outros títulos financeiros, cujos
lucros servem para reembolsar as seguradoras. Sendo assim, as
resseguradoras ocupam desde o século XIX a vanguarda da finança
internacional. O setor – hoje em dia dominado pelas companhias Munich Re
(fundada em 1880) e Swiss Re (criada em 1863) – surgiu após incêndios
que devastaram grandes cidades. Em 1842, Hamburgo ardeu em chamas; as
seguradoras alemãs entraram em situação de calamidade, e assim nasceu o
resseguro.
Diversos tipos de risco reviraram o setor recentemente: terrorismo,
riscos tecnológicos e multiplicação de desastres naturais –
principalmente por causa das mudanças climáticas – com custos cada vez
mais elevados. A Swiss Re produz dados anuais bem completos, compilados
em uma revista chamada Sigma, sobre a amplitude dos desastres humanos e
seus danos materiais.1 Os números tratam principalmente dos bens
assegurados, ou seja, dos totais que as seguradoras e resseguradoras
pagaram a seus clientes. Nela é possível constatar que, nos países em
desenvolvimento, apenas 3% dos bens perdidos são segurados, contra mais
de 40% nos países desenvolvidos.2
Com 75 mil milhões de dólares, o furacão Katrina, que atingiu a
região de Nova Orleãs em 2005, é considerado até hoje o episódio mais
custoso da história em danos segurados desde 1970 – época na qual esses
dados começaram a ser compilados. A conta sobe para até 150 mil milhões
de dólares se adicionarmos os bens não assegurados. Aparecem em seguida
na lista o terremoto seguido de um tsunami no Japão em 2011 (35 mil
milhões) – que provocou a catástrofe nuclear de Fukushima –, o furacão
Andrews de 1992 nos Estados Unidos (25 mil milhões) e os atentados
terroristas de 11 de setembro de 2001 (24 mil milhões); estes últimos
foram os mais custosos na categoria que a Swiss Re chama de “técnicos”,
ou seja, sem relação com um fenómeno natural.
Na França, em 2003, ano da onda de calor, o custo agregado dos
cataclismos naturais passou de 2 mil milhões de euros, um recorde para o
país. Nos últimos vinte anos, o principal risco natural eram as
inundações, seguidas pelas secas. Dos 25 desastres mais custosos no
período entre 1970 e 2010, mais da metade ocorreu após 2001. O número de
furacões de categoria 4 ou 5 dobrou em 35 anos (5 é a força máxima dos
ventos).
Este tipo de acontecimento pode ter um custo material elevado e um
custo humano baixo, e vice-versa. Os mais mortíferos foram as
tempestades e inundações causadas em 1970 pelo ciclone Bhola em
Bangladesh (Paquistão Oriental na época) e no estado indiano de Bengala,
que fez em torno de 300 mil vítimas. Em terceiro lugar está o tremor de
terra no Haiti em 2010, com 222 mil mortos. A onda de calor e a seca
europeia em 2003, que provocaram a morte de 35 mil pessoas, ficam em 12º
segundo lugar na lista. Aliás, esse é o pior desastre na Europa, que
ocupa com os Estados Unidos as mais altas posições do ranking de
desastres mais custosos financeiramente. Isso comprova, se necessário, o
impacto do desenvolvimento económico sobre a mortalidade nessas
situações.
No ano de 2011 – último com números disponíveis –, a Swiss Re
contabilizou 325 catástrofes, das quais 175 foram consideradas
“naturais” e 150 “técnicas”. A essa segunda categoria, a resseguradora
julgou sábio acrescentar… a Primavera Árabe. (R.K.)
Razmig Keucheyan é conferencista de Sociologia na Universidade Paris-Sorbonne e membro do Groupe d'Étude des Méthodes de l'Analyse Sociologique de la Sorbonne (GEMAS).
1 Imelda V. Abano, “Philippines mulls disaster risk insurance for local governments” [Filipinas refletem sobre seguros contra riscos de desastres com governos locais], Thomson Reuters Foundation, Londres, 22 jan. 2014.
2 Cenas burlescas foram descritas por Michael Lewis, “In nature’s casino” [No cassino da natureza], New York Times Magazine,26 ago. 2007.
3 Erwann Michel-Kerjan (org.), “Catastrophe financing for governments: learning from the 2009-2012 Multicat Program in Mexico” [Financiamento de catástrofes pelos governos: aprendendo com o Programa Multicat do México de 2009-2012], OECD Working Papers on Finance, Insurance and Private Pensions, n.9, Paris, 2011. Esse relatório serve de fonte para os dois próximos parágrafos.
4 “Advancing disaster risk financing and insurance in ASEAN countries. Framework and options for implementation” [Avançando sobre financiamento e seguros contra riscos de desastres nos países da Asean. Quadro e opções de aplicação], Banco Mundial, Washington, abr. 2012. Disponível em: .
5 Cf. “Insurance in the emerging markets: overview and prospects for Islamic insurance” [Seguros nos mercados emergentes: visão geral e prospecção para seguros islâmicos], Sigma, n.5, Zurique, 2008.
6 Ler Donatien Garnier, “Au Bangladesh, les premiers réfugiés climatiques” [Em Bangladesh, os primeiros refugiados climáticos], Le Monde Diplomatique, abr. 2007.
7 Frédéric Morlaye, Risk management et assurance [Gerenciamento de riscos e seguro],Economica,Paris, 2006.
8 Melinda Cooper, “Turbulent worlds: financial markets and environmental crisis” [Mundos turbulentos: mercado financeiro e crise ambiental], Theory, Culture & Society, n.27, Londres, 2010.
9 Para uma história desses produtos financeiros, cf. William Cronon, Nature’s metropolis. Chicago and the Great West [Metrópoles da natureza. Chicago e o Grande Oeste], WW Norton, Nova York, 1992, capítulo 3.
10 John E. Thornes, “An introduction to weather and climate derivatives” [Uma introdução para derivativos climáticos e de tempo], Weather, v.58, Reading (Reino Unido), maio 2003; Samuel Randalls, “Weather profits. Weather derivatives and the commercialization of meteorology” [Lucros sobre o clima. Derivativos climáticos e a comercialização da meteorologia], Social Studies of Science, n.40, Kingston, 2010.
11 Cf. James T. Mandel, C. Josh Donlan e Jonathan Armstrong, “A derivative approach to endangered species conservation” [Uma abordagem derivativa para a conservação de espécies ameaçadas], Frontiers in Ecology and the Environment, n.8, Washington, 2010.
12 James O’Connor, Natural causes. Essays in ecological marxism [Causas naturais. Ensaios sobre ecologia marxista], Guilford Press, Nova York, 1997.
13 Timothy Mitchell, Carbon democracy. Le pouvoir politique à l’ère du pétrole [Democracia do carbono. O poder político na era do petróleo], La Découverte, Paris, 2013.
14 Cf. e especialmente “Catastrophes naturelles et techniques en 2011” [Catástrofes naturais e técnicas em 2011], Sigma, n.2, Zurique, 2012. Os dados apresentados provêm desse exemplar.
15 Koko Warner et al., “Adaptation to climate change. Linking disaster risk reduction and insurance” [Adaptação às mudanças climáticas. Ligações entre redução de riscos de desastres e seguros], Secretaria Internacional de Estratégias para a Redução de Riscos de Desastres das Nações Unidas (UNISDR), 2009.
Artigo publicado na edição brasileira do Le Monde Diplomatique
Fonte: http://www.esquerda.net/artigo/quando-catastrofe-climatica-vira-produto-financeiro/32211
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