Os
Campeonatos do Mundo ou os Jogos Olímpicos são cada vez mais offshores face à
lei vigente e ao funcionamento social corrente.
No capitalismo global, os megaeventos desportivos - como os
Campeonatos do Mundo ou as Olimpíadas - são celebrações da excecionalidade. São
mostrados como ilhas de ordem na desordem global e de paz na guerra global. São
momentos de hipocrisia por excelência, em que as mensagens de fair-play e de
competição com regras são financiadas pelas grandes marcas globais, que
praticam o mais possível o seu oposto no dia a dia. E, mais do que tudo, são
organizações hipersecuritizadas contra qualquer risco de expressão de crítica
social que traga para os olhos do mundo as condições quotidianas concretas dos
povos e das pessoas em cujos espaços esses eventos ocorrem. Essa natureza de
ilhas exige a imposição de um estado de exceção. Os Campeonatos do Mundo ou os
Jogos Olímpicos são cada vez mais offshores face à lei vigente e ao
funcionamento social corrente.
A "Lei Geral da Copa", imposta pela
FIFA ao Estado brasileiro, consagra zonas de não aplicação da lei nacional em
anéis de dois quilômetros em volta dos estádios, onde vigora um rigoroso
monopólio de atividade comercial dos patrocinadores oficiais
O Campeonato do Mundo de futebol ontem inaugurado
condensa em si todos estes traços. A "Lei Geral da Copa", imposta
pela FIFA ao Estado brasileiro, consagra zonas de não aplicação da lei nacional
em anéis de dois quilômetros em volta dos estádios, onde vigora um rigoroso
monopólio de atividade comercial dos patrocinadores oficiais (os quais, tal
como a própria FIFA, beneficiarão de isenção total de impostos brasileiros,
numa desoneração total estimada em mil milhões de reais). Mais relevante: a
FIFA estabeleceu como requisito para a realização do Mundial a adoção pelo
Estado brasileiro de novas tipificações criminais e a criação de tribunais de
exceção para julgamentos ultrassumários em que serão aplicadas penas mais duras
e com prejuízo dos direitos de defesa. E não chegasse isto, o estado de exceção
associado ao Mundial faz-se também de dois mil milhões de reais gastos com
segurança pública (dos quais 54 milhões para a compra de armamento), da
hiper-militarização das cidades - e, nelas, sobretudo das comunidades pobres -
e do treino dos batalhões de segurança urbana especial em países como Israel.
Eis o "padrão FIFA de qualidade" traduzido por miúdos...
A FIFA estabeleceu como requisito para a
realização do Mundial a adoção pelo Estado brasileiro de novas tipificações
criminais e a criação de tribunais de exceção para julgamentos ultrassumários
em que serão aplicadas penas mais duras e com prejuízo dos direitos de defesa
O "padrão FIFA de qualidade" são também
as rendas choradas a pagar aos que nunca deixam de ganhar. Lá como cá, esses
serão os beneficiários das parcerias público-privado, como a Odebrecht, que
arrecadam os benefícios da construção dos estádios amarrando as imensas perdas respectivas
ao Estado. Ou seja, aos contribuintes: os governos estaduais contraíram
empréstimos no valor de pelo menos 4,8 mil milhões de reais junto do BNDES para
construir estádios que ficarão praticamente sem uso depois do Mundial (sim, o
"padrão UEFA de qualidade" que conhecemos em Leiria ou em Olhão foi
consagrado em Manaus, em Cuiabá ou na Bahia...).
Para as centenas de milhares de pessoas removidas
dos seus lugares de residência precária - só no Rio de Janeiro foram cerca de
4700 famílias - sem qualquer garantia de que lhes seja dada habitação, e para
as tantas meninas que darão rosto aos números do aumento exponencial da
exploração sexual de menores o "padrão FIFA de qualidade" é sinónimo
de desespero que se somará ao desespero que já era o das suas vidas. É na
condição destas pessoas que fica patente o outro lado da hipocrisia destes
eventos globais: a sua retórica será a de uma espécie de tranquilizador zen
planetário, ao passo que a sua prática é a do espezinhamento desapiedado dos
direitos humanos de quem nunca os teve senão em teoria.
Desta contradição está, porém, a brotar uma nova
consciência social. Que o povo brasileiro, amante por excelência do futebol,
venha à rua clamar que não quer menos do que o "padrão FIFA de qualidade"
para a saúde, para o ensino e para os demais direitos sociais é uma fantástica
sementeira de esperança. Essa pode bem vir a ser o maior legado desta Copa.
fonte: http://www.esquerda.net/opiniao/o-padrao-fifa-de-qualidade/33028
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