6 de set. de 2012

A Inculturação


Historicamente o tema inculturação tornou-se um debate teológico e pastoral há uns trinta ou quarenta anos, não mais. Claro, na primeira metade do século XX houve a “questão dos ritos” na China, mas podemos dizer que em diversos países de missão havia adaptações locais feitas pelos missionários, aceitas e por vezes introduzidas na pastoral - sobretudo não-sacramental - as quais favorizaram a evangelização e a piedade popular. Porém encontramos adaptações em todas as épocas da evangelização e da vida da Igreja sem que necessariamente tenha-se aberto debates importantes ou que se tenha falado de inculturação. A expressão vem sido realmente utilizada somente a partir dos anos sessenta.
Penso que se se deva encetar uma sólida reflexão sobre a inculturação sem ficar em adaptações marginais, que nunca foram um real problema (língua vernacular, utilização de instrumentos musicais, gestos, expressões artísticas, etc.), dever-se-ia considerar a experiência da Igreja entre o IV e X séculos, nos quais constituíram-se os diferentes movimentos de pensamento teológico e nos quais evoluíram os grandes ritos litúrgicos.
Durante todo esse período de vida da Igreja verifica-se um fenômeno de inculturação muito intenso, conduzido por evangelizadores e fundadores de Igrejas locais (sem falar dos Padres da Igreja) que, a partir da mensagem evangélica e de um profundo enraizamento eclesial - como testemunharam os santos irmãos Cirilo e Metódio, apóstolos dos Eslavos no século IX - , souberam tocar a alma e a cultura dos povos por eles evangelizados, transmitindo-lhes, sem deformar, a substância da doutrina da Verdade tanto no plano dogmático quanto moral e litúrgico. A estratégia deles foi inversa a que é muito frequente hoje em dia: eles partiram da mensagem do Evangelho, tal qual a Igreja daquele tempo a transmitia pelo envio de missionários por parte de Papas, Patriarcas e Bispos; e, à luz da Revelação e da Tradição que viviam, eles iluminavam a vida e as tradições dos povos que evangelizavam.
É sob esta luz da fé proclamada, isto é, a Palavra de Cristo (Rm 10,17), que vão se revelar as “sementes do Verbo” na vida dos povos evangelizados e que vão tornar-se apoios culturais que permitirão o “enxerto” (Rm 11,17) ou a “encarnação” (Col 2,9) da Mensagem em meio de não-cristãos. O Cardeal Paul Poupard chama isto “a fé que se torna cultura”.
O debate atual sobre a inculturação é frequentemente muito mal posto, para não dizer às avessas. O símbolo pagão não é indiferente ou neutro nem tampouco pluri-significativo. Pois, não se pode transferir um símbolo pagão para um símbolo cristão sem que se tenha uma mudança radical de sentido. Se assim fosse, estaríamos numa confusão de “Babel” onde as mesmas palavras (ou sinais) não têm mais as mesmas significações e portanto não exprimem mais nada (a não ser para alguns iniciados). É, aliás, o caso de certas tentativas, como no rito dito “zairense”, limitado a Kinshassa (Congo Democrático), o qual provém ou do folclore, sem nenhum enraizamento na cultura vivida, ou do anti-sentido teológico, o que levou à revisão de certas partes da liturgia, e que de todo modo geograficamente limitado (enquanto que o Evangelho se desenvolve e renova a inteligência pela luz da fé). Hoje a inculturação é principalmente um diálogo de iniciados, de salões de teologia. A sua vulgarização não esclarece o debate e sobretudo dispersa o esforço que ela deveria suscitar muito melhor e muito mais no âmbito eclesial. Por vezes percebemos que alguns têm a impressão de serem profetas do inédito, de modas litúrgicas e movimentos eclesiais efêmeros que, finalmente, cedo ou tarde acabam.
Uma verdadeira inculturação necessitará de muito tempo e não poderá ser feita a não ser no coração de Igrejas evangelizadas e enraizadas no terreno evangélico e eclesial da fé (na plenitude da Verdade, isto é, na sua catolicidade) e não por meio do “batismo” de uma simbologia pagã. Este tipo de tentativa não é mais que uma demagogia evangelizadora e não um trabalho longo, escondido e, frequentemente, pouco gratificante de uma evangelização profunda. O missionário é encarregado de anunciar o Evangelho “a tempo e a contra tempo”; o pastor e o teólogo (que podem ser o mesmo; ambos porém orantes e contemplativos do Logos) têm por tarefa inculturar - isto é, enraizar, tornar inteligível - a Mensagem nas profundezas da experiência humana para curá-la, revelá-la, vivificá-la. Será por meio desta purificação no fogo da Palavra e do Espírito que as culturas humanas, por obra da graça, poderão conhecer um autêntico crescimento e desenvolvimento até a maturidade.
Assim, pois, poderíamos esboçar o caminho da inculturação.
Padre Pierre-Marie Soubeyrand
Comunidade das Beatitudes (Costa do Márfim—ÁFRICA)
www.beatitudes.org E-mail: semndd@aviso.ci

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